Inflamação está associada à depressão - saiba como avaliar

A relação entre a inflamação e a saúde mental tem sido um foco crescente de pesquisa nas últimas décadas. Evidências crescentes sugerem que processos inflamatórios crônicos podem desempenhar um papel crucial no desenvolvimento e progressão de diversos transtornos psiquiátricos, como depressão, ansiedade, esquizofrenia e transtorno bipolar.

Biomarcadores inflamatórios são substâncias mensuráveis no corpo que indicam a presença e a intensidade de um processo inflamatório. Eles podem ser proteínas, genes ou outras moléculas que são liberadas pelas células do sistema imunológico em resposta a uma infecção, lesão ou outro tipo de estresse. Neste estudo os autores optaram por analisar biomarcadores baratos no sangue.

Como a inflamação pode afetar o cérebro?

A inflamação pode alterar a produção e a função de neurotransmissores, como a serotonina e a dopamina, que estão envolvidos na regulação do humor e do comportamento. Processos inflamatórios crônicos podem prejudicar a plasticidade sináptica, a capacidade do cérebro de se adaptar e formar novas conexões neuronais.

A inflamação também pode aumentar a permeabilidade da barreira hematoencefálica, permitindo que substâncias inflamatórias entrem no cérebro e causem danos.

Quais são os principais biomarcadores inflamatórios associados a transtornos psiquiátricos?

- Proteínas de fase aguda: São proteínas produzidas pelo fígado em resposta à inflamação. A proteína C reativa (PCR) é um exemplo de proteína de fase aguda que está frequentemente elevada em pacientes com transtornos psiquiátricos. Outra proteína de fase aguda é a haptoglobina (alfa 2-glicoproteína), produzida no fígado, que se liga irreversivelmente à hemoglobina após a hemólise.

- Leucócitos: também conhecidos como glóbulos brancos, são as células de defesa do nosso organismo.

- Plaquetas: As plaquetas, embora sejam primariamente conhecidas por seu papel na coagulação sanguínea, também desempenham um papel crucial nos processos inflamatórios. Plaquetas liberam mediadores inflamatórios como histamina, fatores de crescimento e citocinas.

- Citocinas: São proteínas que regulam a resposta imune. Algumas citocinas, como a interleucina-6 (IL-6) e o fator de necrose tumoral-alfa (TNF-α), estão frequentemente elevadas em pacientes com depressão e outros transtornos psiquiátricos.

Estes e outros biomarcadores inflamatórios podem auxiliar no diagnóstico precoce e diferencial de transtornos psiquiátricos. Níveis elevados de biomarcadores inflamatórios podem ser um fator de risco para o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos e podem indicar um pior prognóstico. A pesquisa sobre biomarcadores inflamatórios e transtornos psiquiátricos representa um campo de investigação em rápida expansão.

A compreensão dos mecanismos pelos quais a inflamação contribui para o desenvolvimento e progressão desses transtornos pode levar a avanços significativos no diagnóstico, tratamento e prevenção. Uma dieta rica em alimentos anti-inflamatórios pode ajudar a reduzir a inflamação sistêmica e cerebral.

Alguns alimentos chave incluem:

- Frutas, ervas e legumes: São ricos em antioxidantes, que ajudam a combater os danos causados pelos radicais livres.

- Peixes gordurosos: Contêm ácidos graxos ômega-3, que têm propriedades anti-inflamatórias.

- Grãos integrais: São uma fonte de fibras e nutrientes essenciais.

- Nozes e sementes: Contêm ácidos graxos poliinsaturados e antioxidantes.

- Óleos saudáveis: Como azeite de oliva extra virgem e óleo de linhaça.

Além da dieta, um estilo de vida saudável também pode influenciar a inflamação e a saúde mental. Alguns hábitos importantes incluem:

- Exercício regular: A atividade física ajuda a reduzir a inflamação e melhorar o humor.

- Gestão do estresse: Terapia e técnicas de relaxamento, como meditação e yoga, podem ajudar a reduzir o estresse e a inflamação.

- Sono adequado: A falta de sono pode aumentar os níveis de inflamação e contribuir para problemas de saúde mental.

- Limitação do consumo de álcool e tabaco: Essas substâncias podem aumentar a inflamação e agravar os sintomas de transtornos psiquiátricos.

Vídeo: https://youtu.be/Evwq4IjX-UY

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Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/

Microbiota e autismo

O transtorno do espectro autista (TEA) é um transtorno neurológico que afeta o desenvolvimento normal do cérebro. A descoberta do eixo microbiota-intestino-cérebro indica a conexão bidirecional entre nosso intestino e cérebro, demonstrando que a microbiota intestinal pode influenciar muitos transtornos neurológicos, como o autismo.

Uma grande parcela de pessoas no espectro do autismo sofre de sintomas gastrointestinais (GI). Muitos estudos mostraram que a colonização precoce, o modo de parto e o uso de antibióticos afetam significativamente o microbioma intestinal e o início do autismo.

A dieta também tem um papel importante. Indivíduos mais seletivos, com baixo consumo de frutas, verduras, cereais integrais, castanhas e sementes possuem menos fibras disponívies no intestino. A fermentação microbiana de fibras vegetais é muito importante. Bactérias específicas nutrem-se destas fibras e, a partir delas, produzem substâncias como os ácidos graxos de cadeia curta (AGCC).

Os AGCCs, como o butirato, propionato e acetato, são produzidos pela fermentação de fibras alimentares pelas bactérias intestinais. Eles desempenham várias funções benéficas, como a regulação da inflamação, proteção da barreira intestinal e hemato-encefálica, além de sua influência na comunicação entre o intestino e o cérebro.

Algumas pesquisas sugerem que o desequilíbrio na proporção de bactérias, condição conhecida como disbiose intestinal, e na produção de AGCC pode estar relacionado a sintomas do TEA. Por exemplo, níveis elevados de propionato têm sido associados a alterações comportamentais em modelos animais que lembram características do autismo. Por outro lado, níveis baixos de butirato gerados pela redução de bactérias produtoras deste AGCC, como Faecalibacterium prausnitzii e Roseburia associam-se à mais inflamação e alterações comportamentais.

Assim, AGCC podem ter um efeito benéfico ou prejudicial no intestino e no desenvolvimento neurológico de indivíduos com TEA. Atualmente, terapias comportamentais e intervenções terapêuticas específicas, incluindo o uso de medicamentos (Aripiprazol, Escitalopram, antidepressivos e anticonvulsivantes) fazem parte do conjunto de estratégias usadas no tratamento de questões cognitivas e comportamentais associadas ao transtorno.

Contudo, para muitos indivíduos, estes medicamentos podem aumentar hiperatividade, agressividade, além de possíveis efeitos colaterais como vômitos, irritabilidade, aumento do apetite, ganho de peso e sedação. Estes medicamentos também podem alterar o funcionamento gastrointestinal. Como sintomas gastrointestinais (GI), como constipação, dor abdominal, diarreia e vômitos já são mais comuns neste população, estratégias que modulem o eixo intestino-cérebro são muito importantes.

Evidências crescentes explicam que a disbiose microbiana intestinal está implicada na patogênese de várias doenças, incluindo doença inflamatória intestinal (SII), doença celíaca (DC), alergia, asma, síndrome metabólica, doença cardiovascular, obesidade e TEA.

O intestino contém milhões de células nervosas, eventualmente formando uma extensa rede chamada sistema nervoso entérico (SNE), considerado nosso segundo cérebro. As comunicações do eixo intestino-cérebro ocorrem por meio do sistema nervoso autônomo, sistema nervoso entérico, neurotransmissores, hormônios e respostas imunológicas.

Os neurotransmissores produzidos no intestino influenciam nossas emoções regulando o eixo intestino-cérebro. Cerca de 90% dos neurotransmissores, como a serotonina, são produzidos no intestino.

O aminoácido essencial triptofano encontrado nos alimentos atua como um precursor de um neurotransmissor chamado serotonina. Bactérias intestinais benéficas, como Bifidobacterium infantis, convertem 1 a 2% do triptofano em serotonina, regulando emoções e comportamento. O Clostridium sporogenes aumenta a produção de metabólitos de triptofano chamados ácido indol-3-propiônico (IPA), uma molécula bioativa que aumenta a produção de moléculas antioxidantes e neuroprotetoras dentro do intestino. Mas, o intestino também pode ser invadido por vários micróbios patogênicos, levando ao desenvolvimento de problemas gastrointestinais após a presença de Clostridium bolteae. Essa cepa específica de bactéria produz neurotoxina tetânica (TeNT), que passa pelo nervo vago para o SNC e bloqueia neurotransmissores pela clivagem proteolítica da sinaptobrevina, uma proteína da membrana da vesícula sináptica, e precipita toda uma gama de déficits comportamentais. Assim, a presença de Clostridium tetani pode ser usada como um indicador para o TEA.

Um estudo recente apresentou que a cepa UCC118 de Lactobacillus salivarius e Lactobacillus casei L26 LAFTI produz bacteriocinas (antibióticos naturais) que impedem o crescimento de bactérias patogênicas, como Listeria monocytogenes, E. coli e L. monocytogenes e protegeram a parede intestinal. A cepa probiótica Lactobacillus johnsonii LA1 libera uma bacteriocina específica que inibe o crescimento da bactéria causadora de úlceras Helicobacter pylori.

A atividade física também impacta positivamente a composição saudável da microbiota, que regula a homeostase intestinal e mantém a integridade intestinal. Enriquece a diversidade microbiana, levando a um aumento na proporção Bacteroidetes–Firmicutes, contribuindo para a redução de distúrbios metabólicos e gastrointestinais ao aumentar a produção de metabólitos bacterianos como AGCC.

Em 2019, a Food and Drug Administration (FDA), nos Estados Unidos reconheceu a terapia de transplante microbiano e a rotulou como "via rápida" para o tratamento do TEA após observar os ensaios clínicos bem-sucedidos usando terapia de transplante microbiano de longo prazo de crianças neurotípicas para crianças no espectro do autismo.

Para entendermos melhor a microbiota de cada paciente no espectro é importante a análise genômica do microbioma intestinal, que facilita a escolha dos possíveis candidatos às intervenções nutricionais (uso de probióticos, fibras prebióticas, pós-bióticos) ou mesmo encaminhamento para transplante fecal.

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/

Autismo: do útero à fase adulta

O autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento diagnosticado com base na avaliação clínica de características comportamentais. Caracteriza-se por um amplo espectro de apresentações e tem associação com comorbidades, incluindo questões gastrointestinais, imunes e mitocondriais.

O aumento dramático da prevalência de transtorno do espectro do autismo (TEA) nas últimas décadas exige pesquisas que dêem respostas e consigam inverter o aumento de casos. Além disso, a complexidade biológica do TEA exige mudanças para um modelo de saúde mais coerente com as necessidades destes indivíduos.

Gestação e TEA

Toda mulher deve preparar-se bem para engravidar. Inflamação, uso de medicamentos ou drogas, infecções, desnutrição ou obesidade são alguns dos fatores que podem afetar o neurodesenvolvimento fetal.

A programação neural fetal, que ocorre durante a ontogênese (origem e desenvolvimento humano) e a neuroplasticidade precoce são eventos cruciais no neurodesenvolvimento infantil.

Existe uma janela de oportunidade inicial para o neurodesenvolvimento. Os primeiros 1.100 dias são cruciais. Incluem o período entre os 3 meses antes da concepção e os 2 anos de vida da criança e é quando ocorre a programação metabólica. Todas as exposições ambientais que o bebê tem neste período vão influenciar o seu desenvolvimento, metabolismo e saúde futuras.

Neste período, insultos exógenos e mudanças negativas no ambiente materno têm um efeito perturbador máximo no cérebro e podem gerar consequências para a saúde ao longo da vida. O que acontece no início da vida gera resultados de longo prazo, influenciando vias enzimáticas e imunoneuroendócrinas tanto no período intrauterino, qunato pós-natal.

Várias anormalidades biológicas estão envolvidas na etiopatogenia do TEA. Estudos atuais tentam compreender as influências genéticas, epigenéticas, questões ambientais, imunogenéticas, microbiolóticas, metabólicas e eletrofisiológicas, suas interações e ligações com o fenótipo clínico apresentado por cada indivíduo.

Fenótipo, em genética, é justamente o complexo das características apresentadas por uma pessoa e passíveis de observação. Resulta da expressão de genes combinada com as outras interações citadas acima.

Interrelação entre nutrição materna e fetal, microbiota, genética, epigenética e o neurodesenvolvimento nos primeiros 1.100 dias (Indrio et al., 2017)

Não devemos pensar apenas no comportamento alterado e o que fazer a respeito, mas em um fio condutor que vai do acompanhamento da mulher que deseja engravidar, estratégias de prevenção primária na gravidez e adequado suporte para a mulher e seu bebê (físico, emocional, nutricional etc).

Os transtornos do neurodesenvolvimento são melhor representados por uma possível trajetória de fragilidade, com influências genéticas, mas pelo menos parcialmente, modificável. O TEA não é um quadro estático resultante de um dano cerebral fixo e inevitável.

Fenótipo do TEA

O TEA é um distúrbio do neurodesenvolvimento de início precoce, atualmente diagnosticado através de testes comportamentais padronizados, idealmente antes dos 2 a 4 anos. A ampla gama de apresentações explica a definição padrão de Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). Observa-se ampla variedade em termos de habilidades de comunicação social, interação em múltiplos contextos, comportamentos repetitivos, padrão restrito de interesses e anormalidades sensoriais.

No padrão de início precoce mais comum, características atípicas na linguagem vocal-verbal e no desenvolvimento sociocomunicativo são detectadas nos primeiros 12 meses, e é relatada falha na aquisição de habilidades.

Cerca de 30% dos indivíduos com diagnóstico de TEA apresenta um QI mais baixo que a média e outros 30% um QI superior à média. A vasta gama de combinações dentro do espectro coloca o difícil desafio de responder a este grupo diversificado de pessoas, dotadas de necessidades e pontos fortes únicos, de forma personalizada.

Outra questão é que algumas crianças no espectro autista apresentaram inicialmente um período de desenvolvimento aparentemente típico, seguido de perda de habilidades previamente estabelecidas. O fenômeno é denominado “regressão” e normalmente ocorre entre 15 e 30 meses de idade, com média de 21 meses. Nestes casos, observa-se mais comumente disfunção mitocondrial, que também precisa ser tratada (Frye, 2020).

Anomalias no funcionamento mitocondrial geram um distúrbio sistémico, não limitado ao cérebro, mas que envolve também outros órgãos e sistemas. Isso é consistente com a ocorrência frequente de comorbidades, como anormalidades imunológicas e gastrointestinais, que impactam a saúde e a qualidade de vida das pessoas com TEA.

A interação entre genética, epigenética e ambiente

Estudos genéticos quantitativos, incluindo estudos com gêmeos, sugerem um forte papel da genética no TEA. Centenas de variantes genéticas, identificadas usando estudos de associação genômica ampla (GWAS), variantes de número de cópias (CNVs), bem como mutações de novo (não herdadas dos pais) em regiões não codificantes são associadas ao TEA. Contudo, individualmente, alterações genéticas explicam apenas 1% dos casos de TEA.

O impressionante aumento na prevalência do TEA torna implausível a hipótese de um número crescente de alterações monogênicas e, por esta razão, um modelo epigenético foi sugerido. Epigenética refere-se a mudanças nos mecanismos reguladores dos genes que são independentes da alteração das sequências codificadoras do DNA.

A epigenética ajusta a expressão de genes com base nas mudanças do ambiente celular. Metilação do DNA, modificações nas caudas das histonas e RNAs não codificantes (como microRNAs) são os tipos de alterações epigenéticas mais comumente estudados. Epi significa por cima. É algo que vai por cima do material genético. Veja na figura abaixo, um grupo metil (Me) ligando-se ao DNA e às histonas (proteínas em azul).

Fatores como idade materna, obesidade, baixos níveis de vitamina D na gestação, tabagismo, consumo de medicamentos podem gerar modificações epigenéticas (como modificação de histonas e metilação do DNA) com impacto no neurodesenvolvimento (Balachandar et al., 2022).

Estas modificações mudam a forma como os genes comportam-se. Ou seja, influenciam o estabelecimento de padrões de transcrição genética através de mecanismos, que incluem a alteração da acessibilidade aos genes e a fatores de transcrição, intensificação ou silenciamento, bem como mudança na expressão ou estabilidade de microRNAs.

Em essência, epigenética significa um novo modelo de genoma sistêmico que coloca a sequência de DNA no centro de uma rede molecular dinâmica, fluida, unitária e interativa, envolvendo o ambiente interno e externo. O genoma é proposto como um sistema fluido, composto pela sequência de DNA, pela estrutura responsiva das histonas e pelas informações do ambiente circundante, no sentido mais amplo do termo.

O epigenoma – como um software que liga e desliga genes – ajusta a correspondência entre informações provenientes de fora (meio ambiente) e informações codificadas por milhões de anos no DNA (o hardware). Os marcadores epigenéticos apresentam um nível relativamente alto de plasticidade durante períodos de diferenciação celular, incluindo o neurodesenvolvimento. A exposição ambiental que ocorre durante a gravidez pode levar a modificações de longo prazo nos padrões epigenéticos.

Algumas marcas epigenéticas são passadas de uma geração para outra. Por exemplo, uma mulher que fuma pode ter marcas epigenéticas que vão passar para seus filhos e depois destes para seus netos (Watkins et al., 2022). O cigarro também induz mudanças no padrão de metilação do DNA do esperma do homem e óvulos das mulheres e contribui para alterações no neurodesenvolvimento (Jung et al., 2017).

Síndromes genéticas e TEA

A síndrome de Rett é um exemplo bem conhecido de condição genética do neurodesenvolvimento que inclui comportamento autista (em até 61% dos casos) e cuja etiologia está diretamente relacionada à regulação epigenética (Petriti et al., 2023). A síndrome de Rett é causada por mutações no gene MECP2, que encodifica a proteína metilada de ligação ao DNA MeCP2 (do inglês, methyl-CpG-binding protein 2), causando a ativação ou a inibição da transcrição deste gene, dependendo do contexto genômico. Ocorre exclusivamente em meninas.

Além da síndrome de Rett, também a síndrome do X frágil, a síndrome de Angelman e a síndrome de Beckwith-Wiedemann são todas associadas à desregulação epigenética e cada uma compartilha uma sobreposição fenotípica com o TEA .

Outros estudos avaliam genes candidatos em pessoas sem diagnóstico de síndromes genéticas. Verifica-se frequentemente hipermetilação de genes como PRRT1, C11orf21/TSPAN32, OXTR, GAD1, EN2 e OR2L13. A função desses genes ainda não é totalmente conhecida, mas estão frequentemente envolvidos em distúrbios neurológicos diversos. Analogamente, modificações de histonas (metilação e acetilação) em associação com TEA foram consistentemente encontradas no gene que codifica H3K27 no cerebelo e no córtex de pessoas no espectro autista.

Além disso, vários estudos evidenciaram que RNAs não codificantes curtos, como microRNAs, são expressos diferencialmente no tecido cerebral, bem como na periferia (soro/plasma, saliva) de indivíduos com TEA. MicroRNAs (miRNAs) são pequenos RNAs não-codificantes, conservados ao longo da evolução, capazes de regular a expressão gênica através da degradação ou repressão da tradução de moléculas-alvo de RNA mensageiro (Amaral et al., 2010).

MicroRNAs podem reprimir a tradução de mRNAs importantes no desenvolvimento e nas funções neurais. Como tal, os miRNAs apresentam grande potencial para servir como biomarcadores para diagnóstico ou prognóstico de TEA e alvos terapêuticos para o tratamento de TEA. A figura abaixo mostra miRNAs desregulados em diferentes regiões do tecido cerebral de autópsia de pacientes com TEA, incluindo córtex cerebelar (em laranja), córtex frontal (em azul), lobo temporal (em verde) e amígdala (em roxo).

A seta para cima indica miRNAs regulados positivamente, enquanto a seta para baixo indica miRNAs regulados negativamente (Li et al., 2022).

Transição epidemiológica e TEA

Assistimos a uma profunda transformação epidemiológica, com aumento das doenças imunoalérgicas, inflamatórias, metabólicas, crônico-degenerativas, do neurodesenvolvimento, neuropsiquiátricas, neurodegenerativas e neoplásicas. O fenômeno como um todo sugere um modelo patogenético comum. Como o período de tempo é demasiado curto para que as alterações genéticas tenham tido um impacto apreciável na prevalência das doenças acima mencionadas, é mais plausível que o aumento reflita alterações na programação genética (epigenética) induzidas por um número crescente de factores de estresses ambientais durante períodos críticos.

Esta interpretação é a base da teoria da origem epigenética/embriofetal das doenças (DOHaD – Developmental Origin of Health and Diseases). A teoria DOHaD sugere uma perspectiva sistêmica, para explicar as razões da profunda transformação da saúde e da doença humana. A teoria leva em consideração o impacto dos estressores ambientais nas modificações epigenéticas reativas-adaptativas e preditivas (programação fetal) na diferenciação celular e tecidual, com consequências de longo prazo no desenvolvimento individual e no impacto transgeracional.

Doenças autoimunes como lúpus eritematoso, artrite reumática e tireoidite de Hashimoto parecem aumentar significativamente o risco de TEA (até 34%). Mães com doenças autoimunes produzem autoanticorpos e citocinas que atravessam a barreira placentária e a barreira hemato-encefálica. Citocinas, células T ativadas, autoanticorpos e micróglia – os macrófagos do sistema nervoso central – exercem um papel fundamental na presença de antígenos e na produção de citocinas no bebê.

Os autoanticorpos maternos direcionados contra o receptor de folato α (FRα) merecem ser mencionados. O folato (vitamina B9) desempenha um papel fundamental no desenvolvimento neural durante o período embriofetal e nos primeiros anos de vida. O folato desempenha um papel essencial na comunicação célula a célula e nas vias metabólicas de purinas, metilação e redox. Como a sua concentração no cérebro é várias vezes superior à do plasma, depende de mecanismos de importação ativos, baseados em FRα, para atravessar as barreiras placentária e cerebral, mas o transporte é inibido por autoanticorpos anti-FRα (FRAAs). Os sintomas de TEA são frequentemente mais graves em crianças autistas de mães positivas para FRAAs. FRAAs também são detectados em 58-76% das crianças com TEA.

Modulação imunológica materna

A ativação imunológica materna (AIM) é um braço efetor da desregulação epigenética (hipo ou hipermetilação e anormalidades na acetilação de histonas). Infecções, exposições a toxinas, estresse materno e obesidade materna impactam a resposta imunológica materna. Mudanças no ambiente imunológico gestacional estão correlacionadas com aumento do risco de distúrbios do neurodesenvolvimento, esquizofrenia nos filhos de mães com autoimunidade, mais alergia, asma, depressão.

Programas transcricionais e translacionais, que são alvos dos genes FMR1 e CHD8 altamente penetrantes no TEA, são fortemente afetados por AIM, bem como genes relevantes para diferenciação, sinalização gama-aminobutírica e Wnt (vias de transdução de sinal que regulam aspectos cruciais da determinação do destino celular, migração celular, polaridade celular, padronização neural e organogênese durante o desenvolvimento embrionário). Alterações são influenciadas pelo momento da ativação imunológica pré-natal, alterando a metilação em genes críticos para o desenvolvimento e funções das células GABAérgicas.

Anormalidades na resposta imune no cérebro com TEA também são relatadas. Estudos transcriptômicos em todo o genoma demonstram que os cérebros do TEA são enriquecidos com genes microgliais M2 “ativados” e genes relacionados à resposta imune inata. Há presença de muitos CpGs desregulados em regiões corticais de pessoas com TEA. Há um enriquecimento muito significativo para áreas genômicas responsáveis pelas funções imunológicas entre os CpGs hipometilados, enquanto os genes relacionados à membrana sináptica foram enriquecidos entre os CpGs hipermetilados.

Vários estudos centraram-se na associação entre os genes do antigénio leucocitário humano (HLA) e o risco de TEA. O HLA é uma região genética complexa com papel fundamental em algumas doenças autoimunes e na resposta à infecção, mas também na tolerância fetal. Portanto, o impacto do HLA no TEA pode não ser atribuído a um único gene HLA específico, mas sim a uma série de genes diferentes que podem intervir em diferentes estágios. Demonstrou-se que as moléculas HLA classe I desempenham um papel complexo e significativo no desenvolvimento do cérebro.

HLA classe I e HLA-G interagem com receptores semelhantes a imunoglobulinas assassinas (KIR) expressos por células assassinas naturais (NK), os efetores da imunidade inata. Durante a gravidez, as NK estão altamente concentradas na mucosa uterina, na interface fetal/materna. As NK podem ser ativadas ou inibidas através da interação de KIR ativador e/ou inibitório específico com moléculas HLA-C e HLA-G não clássicas no trofoblasto fetal. Foi amplamente demonstrado que a interação KIR-HLA desempenha um papel importante nas complicações da gravidez. Notavelmente, as complicações da gravidez são, juntamente com a autoimunidade, muito comuns em mães com TEA.

Os mediadores determinantes da patologia do TEA associada à MIA são provavelmente elevações nas citocinas e quimiocinas maternas. Portanto, a MIA pode ser considerada como uma “condição inicial” para distúrbios do neurodesenvolvimento, um contexto de suscetibilidade sobre o qual outros fatores de risco podem então ser estabelecidos. Podem ser agentes infecciosos, qualquer tipo de estimulação imunológica e exposição a substâncias tóxicas (particularmente álcool e drogas).

A microbiota materna pode exercer um efeito indireto sobre o feto através de fatores maternos, como respostas imunológicas maternas, metabólitos microbianos que atravessam a placenta, ou mais indiretamente, através de fatores que podem mediar a programação epigenética no feto, como dieta ou estresse, que também afeta a microbiota materna.

Pesquisas sobre interações intestino-cérebro forneceram evidências sobre as interações estreitas entre o sistema imunológico associado ao intestino, o sistema nervoso entérico e o sistema endócrino intestinal. A disbiose – o estado de comunidades microbianas desequilibradas – e o seu impacto na formação inicial do sistema imunitário foram demonstrados na patogénese de uma vasta gama de doenças, incluindo condições de neurodesenvolvimento e psiquiátricas.

A microbiota intestinal do bebê é estabelecida após o nascimento, nos primeiros três anos. Após o parto, o neonato e a microbiota desenvolvem-se de forma orquestrada. Há uma forte influência da microbiota intestinal materna na microbiota infantil durante a gravidez. Foi demonstrado que as cepas intestinais maternas são mais persistentes no intestino infantil e ecologicamente melhor adaptadas em comparação com aquelas de outras fontes.

O estabelecimento precoce da microbiota intestinal é afetado por vários fatores, como modo de parto (parto cesáreo versus parto vaginal), leite materno versus alimentação com fórmula, uso de antibióticos, momento da introdução de alimentos sólidos e interrupção da alimentação com leite.

As perturbações da microbiota intestinal em desenvolvimento no início da vida podem impactar o neurodesenvolvimento e potencialmente levar a resultados adversos para a saúde mental mais tarde na vida. O conceito de janelas críticas neurais-microbianas paralelas e interativas abre novos caminhos para o desenvolvimento de novas intervenções preventivas e terapêuticas baseadas na microbiota no início da vida.

A microbiota pode regular a maturação e função da microglia ativando vias de sinalização imunológica, a liberação de citocinas e outras moléculas inflamatórias, incluindo a ativação de inflamassomas.

Outros mecanismos estão envolvidos na comunicação entre a microbiota intestinal e o cérebro e foram propostos para explicar o possível papel da microbiota nos distúrbios do neurodesenvolvimento:

  • ativação direta do nervo vago ;

  • produção ou alteração de neurotransmissores, incluindo serotonina; produção de toxinas;

  • aberrações em processos ou produtos de fermentação;

  • degradação da integridade intestinal induzida por disbiose.

Moléculas que interagem podem ser produzidas pela microbiota intestinal, como os ácidos graxos de cadeia curta (AGCC), que podem causar o aumento da permeabilidade intestinal e então atuar em uma série de outros sistemas. AGCC também pode afetar modificações epigenéticas. Em particular, o AGCC butirato é muito especial pois:

  • É um inibidor da histona desacetilase, contribuindo para a obtenção de uma conformação da cromatina menos relaxada. Esta pequena molécula pode atravessar a barreira hematoencefálica e impactar as máquinas epigenéticas no cérebro.

  • Exerce efeitos antiinflamatórios e neuroprotetores e atenua déficits de comportamento social em modelos de autismo.

  • Suporta a função mitocondrial, estimulando a fosforilação oxidativa e a oxidação de ácidos graxos.

  • Tem um efeito positivo em linhas celulares linfoblastóides derivadas de crianças com TEA sob estresse fisiológico.

  • Medeia a disponibilidade de S-metil-metionina (SAM), o doador de grupos metil para metilação do DNA, através da produção de folato para geração de SAM. O folato é geralmente obtido por meio de dieta adequada. Notavelmente, uma enzima chave para regular a disponibilidade de folato para a síntese ou metilação do DNA é a metilenotetrahidrofolato redutase (MTHFR). Notavelmente, alguns polimorfismos genéticos da MTHFR foram associados ao risco de TEA.

Além da disbiose, em comparação com os controles, os pacientes com TEA apresentam um aumento na permeabilidade intestinal (o chamado “intestino permeável”). Entre os fatores que concorrem para o diagnóstico de permeabilidade intestinal, a perda de zonulina é um dos mais importantes. Como uma “porta biológica para a inflamação” níveis mais elevados de zonulina plasmática são relatados em pessoas com TEA do que em controles.

A calprotectina fecal pode ser um biomarcador útil na avaliação do envolvimento do eixo intestino-cérebro. Ele identifica pessoas com inflamação intestinal e foi demonstrada a correlação entre os níveis de calprotectina e os principais domínios da entrevista de diagnóstico de autismo revisada (ADI-R).

Achados clínicos também apoiam a hipótese de um papel fundamental do eixo intestino-cérebro, da ativação imunológica e da microbiota no TEA. Uma alta taxa de alergia e sintomas gastrointestinais (GI) são relatadas em pessoas com TEA. Diarreia, obstipação, vómitos, refluxo, dor/desconforto abdominal, flatulência e fezes com odor invulgarmente fétido são mais frequentes do que em controlos saudáveis. Estes achados podem ser perpetuar na fase adulta.

Inflamação e estresse oxidativo em adultos com TEA

Um aumento relevante nos marcadores de dano oxidativo foi ainda confirmado pela glicação de proteínas, oxidação e adutos de nitração e metaboloma de aminoácidos no plasma.

No TEA a existência de um círculo vicioso entre disbiose, resposta imune e disfunção mitocondrial/estresse oxidativo, um “trio ruim” que pode começar no período embriofetal, impactar o neurodesenvolvimento e até pode causar um agravamento progressivo neurológicos na fase adulta. Se este trio não é interrompido, poderá continuar e contribuir para o agravamento da desordem sistémica ao longo da vida.

Um modelo de saúde abrangente deve ‘juntar os pontos’. A partilha de conhecimentos entre profissionais, família e escola é muito importante.

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/