Alimentação saudável em um país injusto: como fica?

No último dia 14/10/2019 três economistas foram laureados com o prêmio Nobel de Economia pelos estudos sobre o combate à pobreza. No dia 16/10/2019 foi comemorado o dia mundial da alimentação, com festejos e palestras em todo o mundo. Enquanto isso, a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua (PNAD Contínua) também publicada ontem mostrou que o Brasil continua sendo um país extremamente injusto, com o grupo mais rico (1% da população) tendo 33,8 vezes o rendimento da população com menor rendimento. Um décimo da população brasileira concentra 43,1% da massa de rendimento médio mensal real domiciliar per capita. Enquanto os mais ricos aumentam a renda a cada ano, os mais pobres enfrentam perdas progressivas.

Estive em Santos a trabalho esta semana. Não visitava a cidade há quase uma década. O trabalho foi ótimo, mas observei o aumento substancial no número de moradores de rua, catando lixo para comer, o que é de partir o coração. Em Brasília dá-se o mesmo. A recessão econômica abala o mercado de trabalho e o combate à pobreza é cada vez mais urgente. A luta pelo acesso a alimentos saudáveis em quantidade suficiente para todos deve também continuar. Assim como as estratégias de educação alimentar pois, mesmo quando o alimento está disponível, a qualidade não costuma ser a ideal.

Comer em restaurantes está caríssimo. Mas às vezes é a única opção e o brasileiro médio vai gastando até 33% das despesas com alimentação justamente com o consumo de alimentos fora de casa (Brasil, 2019).

A indústria e a manipulação do consumo de alimentos

O consumo de alimentos ultraprocessados, embalados, cheios de sal, açúcar, corantes e conservantes também continua a crescer (PAHO, 2018). As indústrias nadam de braçada. A qualidade dos alimentos ultraprocessados, que é ruim em todo canto, é péssima no Brasil. O iogurte traz na foto um morango mas na prática várias marcas nem morango tem. O alto consumo de alimentos ultraprocessados, com péssima qualidade nutricional, contribui para que mais de 50% dos adultos no Brasil estejam acima do peso, mesmo entre os mais pobres.

O pior é que nem os alimentos in natura escapam, uma vez que a quantidade de agrotóxicos nos produtos de origem vegetal é absurda e não para de aumentar. Como garantir que a geração atual e as futuras tenham acesso a alimentos acessíveis, sustentáveis, saborosos, nutritivos e seguros, principalmente em cidades superpovoadas? E como fazer isso de maneira que os efeitos das mudanças climáticas sejam mitigados, o meio ambiente não seja danificado ainda mais e os pequenos agricultores sejam valorizados como protagonistas-chave em sistemas alimentares urbanos sustentáveis?

Com as atuais tendências globais precisaríamos produzir 60% a mais de alimentos até 2050, o que consumirá mais água doce. Como atender a tudo sem degradar mais ainda o solo e os recursos hídricos? As soluções não são fáceis, muitas entidades precisarão estar envolvidas. O Brasil deve reassumir seu papel de destaque, com responsabilidade, uma vez que possui uma grande área agricultável e é detentor de grande reserva hídrica. E cada pessoa precisará repensar seu consumo. Hoje, cerca de um terço de todos os alimentos produzidos para consumo humano - cerca de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos é desperdiçada por ano.

Podemos também plantar hortas em vasos em casa, no jardim ou em espaços públicos. Embora a agricultura urbana possa fornecer apenas uma quantidade limitada de nutrição necessária à saúde humana, as cidades podem e devem contribuir também. Outro impacto grande da alimentação é na saúde. A cada dólar gasto em alimentos, os custos econômicos, sociais e ambientais chegam a cerca de 2 dólares. Metade dos custos está relacionada à problemas como obesidade, desnutrição e deficiência de micronutrientes.

O problema alimentar é complexo e, em um país injusto como o Brasil, parcerias são urgentes. O governo não tem sido o melhor parceiro da alimentação saudável, o que é muito ruim. Mas não precisamos ficar parados. Outros setores da economia podem envolver-se. Podemos apoiar pequenos agricultores, por meio de CSAs, garantindo condições comerciais mais justas. Supermercados, escolas, hospitais, centros de saúde podem abraçar campanhas de educação nutricional para aumento da aceitabilidade de alimentos seguros, sustentáveis e saudáveis.

Podemos apoiar práticas com menor impacto ambiental, reduzindo o consumo de alimentos de origem animal, podemos ter um canteiro de ervas em casa, podemos cozinhar mais e consumir menos alimentos ultraprocessados. É verdade que os sistemas alimentares são complexos e abrangem um outro conjunto de processos, atividades, infraestrutura e ambiente. Envolvem um grande número de partes interessadas, como produtores, transportadoras, indústrias, varejistas, autoridades públicas, empresas de tratamento de resíduos, consumidores. Mas se não fizermos nossa parte, quem fará por nós?

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/