Cigarro e anestésicos: fatores contribuintes para o aumento da incidência de autismo?

Há uma compreensão crescente de que um subconjunto de pessoas com transtorno do espectro do autismo (TEA) herdaram erros heterogêneos de novo na linha germinativa (óvulo ou espermatozóide que leva ao concepto) ou no concepto inicial, e também que erros epigenéticos podem estar em jogo em algumas formas de autismo.

Pesquisas recentes apontam para um papel significativo de fatores hereditários no autismo, embora este não pareça seguir padrões mendelianos clássicos. Entre as possíveis causas estão falhas moleculares na linha germinativa, precipitadas por exposições mutagênicas ou epimutagênicas sofridas pelos pais ou até mesmo pelos avós.

Exposições Hormonais e o Desenvolvimento de Neurodivergências

Exposições intra-uterinas a toxinas podem induzir alterações epigenéticas sutis nos oócitos iniciais, o que, décadas depois, poderia resultar no desenvolvimento de autismo grave e idiopático em gerações subsequentes.

O Papel do Tabagismo na Transmissão de Alterações Moleculares

Durante entrevistas com pais de crianças autistas, um fator inesperado chama a atenção: o tabagismo. Vários relatos mencionaram mães que fumavam intensamente durante a gravidez ou mesmo pais e avós com hábitos de tabagismo significativo.

O “fumo da vovó” – ou seja, o tabagismo por gerações anteriores – pode ser uma variável importante no estudo do autismo. Esse padrão sugere que exposições transgeracionais, como o tabagismo intenso, poderiam contribuir para alterações epigenéticas, predispondo descendentes a condições neurodesenvolvimentais.

Caminhos para a Pesquisa

Essas observações reforçam a importância de investigar como exposições ambientais, mesmo aquelas consideradas banais, podem ter impactos moleculares duradouros ao longo de gerações. Estudos futuros podem ajudar a decifrar os mecanismos epigenéticos por trás dessas influências e oferecer novas perspectivas para a compreensão e prevenção do autismo.

Por Que o Tabagismo Afeta a Linha Germinativa?

Durante o desenvolvimento fetal, a linha germinativa – as células que formarão óvulos ou espermatozoides – passa por um processo crítico de reprogramação epigenética, incluindo a remoção e o remodelamento de padrões de metilação do DNA. Essa janela de vulnerabilidade torna a linha germinativa altamente suscetível a exposições tóxicas e mutagênicas, como os componentes da fumaça do cigarro.

Principais evidências científicas incluem:

  • A fumaça do cigarro contém mutagênicos e epimutagênicos como benzo(a)pireno, formaldeído e nicotina, conhecidos por causar mutações no DNA germinativo.

  • Estudos em humanos e animais mostram que a exposição ao fumo aumenta danos oxidativos, quebras de DNA e mutações hereditárias nos gâmetas.

  • Exposições como o tabagismo passivo também podem induzir mutações na linha germinativa, mesmo sem afetar as células somáticas.

Exposição Transgeracional: Os Dados Importam

Embora pesquisas prévias tenham se concentrado em exposições próximas ao momento da concepção, o período mais crítico para a linha germinativa ocorre durante o desenvolvimento fetal da geração anterior (F0). É nessa fase que os danos epigenéticos podem ser perpetuados para descendentes F1 e F2.

Além disso, enquanto há evidências limitadas ligando o tabagismo materno pré-natal diretamente ao TEA, estudos mostram que ele provoca alterações epigenéticas significativas em recém-nascidos, aumentando o risco de outros problemas neurodesenvolvimentais.

Por Que Focar no Tabagismo das Décadas de 1950-70?

  1. Alta Prevalência: Durante essa época, até 40% das mulheres grávidas fumavam, muitas vezes em quantidades intensas.

  2. Exposição Intensa: Mulheres que fumavam um maço por dia podiam consumir cerca de 5.400 cigarros durante a gestação.

  3. Facilidade de Registro: O tabagismo é uma exposição bem documentada, facilitando a análise retrospectiva em estudos familiares.

Evidências de Estudos Recentes e Observações Preliminares

Pesquisas e entrevistas com famílias de autistas revelam alguns padrões intrigantes:

  • Casos Graves: Crianças com TEA associadas a avós fumantes frequentemente apresentam autismo grave e não verbal, sugerindo um possível efeito dose-resposta.

  • Histórico Familiar: Muitas famílias não têm histórico anterior de autismo, indicando casos esporádicos possivelmente ligados a exposições ambientais.

  • Outras Condições: Irmãos e primos frequentemente apresentam condições como TDAH e dificuldades de aprendizagem.

  • Diferenças Étnicas: Famílias afro-americanas parecem ter maior prevalência de casos multiplex de TEA associados ao tabagismo de avós.

Autismo e a Hipótese “Quase Genética”

O aumento dramático na prevalência do autismo, que hoje afeta 1 em cada 59 crianças, levanta questões importantes sobre suas causas. Apesar de décadas de pesquisa, a maioria dos casos de autismo permanece idiopática, ou seja, sem causa conhecida. Embora mutações genéticas e exposições fetais tenham sido associadas a uma pequena fração dos casos, ainda há muito a ser explorado.

Uma teoria emergente – a hipótese quase genética – oferece novas perspectivas sobre as origens do autismo, sugerindo que fatores além do código genético podem desempenhar um papel crucial.

O Que É “Quase Genético”?

Embora o DNA seja a base da hereditariedade, os óvulos e espermatozoides contêm um complexo sistema de controle molecular que regula como os genes são ativados ou desativados. Esses sistemas, como o epigenoma e a cromatina, não alteram a sequência de DNA, mas modulam sua expressão.

  • Epigenoma: Conjunto de compostos químicos ligados ao DNA que influenciam a função genética.

  • Cromatina: Estrutura que organiza e regula o empacotamento do DNA, impactando a expressão genética.

Essas camadas adicionais de regulação molecular são essenciais para o desenvolvimento de células e tecidos. Quando sofrem falhas, devido a fatores ambientais ou tóxicos, podem levar a perturbações no desenvolvimento, mesmo sem alterações genéticas.

Autismo e Riscos Não Genéticos

A hipótese quase genética ajuda a responder perguntas-chave:

  1. Por que o autismo é mais comum entre irmãos, mesmo sem mutações genéticas identificáveis?

    • Falhas na regulação epigenética das células germinativas podem ser transmitidas sem alterar o DNA.

  2. Como a prevalência do autismo aumentou tão rapidamente?

    • Exposições ambientais contemporâneas podem afetar as células germinativas de maneira que impacta o desenvolvimento da próxima geração.

  3. Por que há uma diferença de gênero nos casos de autismo?

    • Mecanismos quase genéticos podem interagir com fatores biológicos específicos de cada sexo.

Células Germinativas e o Papel do Ambiente

As células germinativas (óvulos e espermatozoides) não são apenas depósitos de DNA, mas estruturas dinâmicas que respondem ao ambiente. Exposições tóxicas podem desencadear:

  • Falhas no epigenoma e cromatina, potencialmente alterando o desenvolvimento do cérebro e comportamento da prole.

  • Efeitos complexos, que variam de pessoa para pessoa, dependendo de fatores como estágio de desenvolvimento, genética subjacente e bioquímica individual.

Como a Anestesia Pode Impactar Gerações Futuras: Uma Reflexão Baseada em Pesquisas

O uso de anestésicos gerais (AG) tem sido essencial para a evolução da medicina moderna, permitindo cirurgias complexas e seguras. No entanto, estudos realizados desde os anos 1980 têm levantado preocupações sobre os possíveis efeitos de longo prazo desses agentes, especialmente em fetos e nas gerações subsequentes.

Descobertas iniciais mostraram que filhotes de camundongos nascidos de mães expostas a esses agentes durante a gestação apresentaram dificuldades de aprendizagem. Uma descoberta marcante foi que até mesmo os "netos" dessas camundongas – que nunca foram diretamente expostos – apresentaram déficits semelhantes. Isso sugeriu que as alterações causadas pelos anestésicos poderiam afetar células germinativas (óvulos e espermatozoides), transmitindo prejuízos a gerações futuras.

As células germinativas têm um papel único, pois carregam a informação genética e epigenética para as próximas gerações. Exposições químicas durante estágios críticos do desenvolvimento fetal, como as causadas por anestésicos, podem impactar não apenas o feto em desenvolvimento, mas também os gametas que o feto está formando, resultando em alterações que afetam netos e até bisnetos.

Nos anos 2000, estudos como o do Dr. Anatoly Martynyuk, da Universidade da Flórida, continuaram explorando esses efeitos. Um experimento com camundongos expostos ao anestésico sevoflurano mostrou que a prole masculina (mas não feminina) apresentava alterações comportamentais e cognitivas, associadas a mudanças epigenéticas em genes específicos.

Esses achados reforçam a ideia de que agentes anestésicos podem alterar a programação epigenética das células germinativas, impactando o desenvolvimento cerebral das gerações seguintes.

Apesar das evidências em animais, poucos estudos foram conduzidos em humanos para investigar os possíveis efeitos hereditários dos anestésicos gerais. Relatos de famílias sugerem um padrão que merece atenção: algumas mães ou pais que foram expostos a anestesia em estágios críticos da vida relatam filhos com autismo ou outras condições neurodesenvolvimentais.

Embora esses relatos não sejam conclusivos, eles levantam a necessidade de uma investigação científica mais aprofundada, considerando o uso massivo de anestésicos desde a metade do século 20.

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Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/