Em muitas famílias, histórias aparentemente pequenas carregam o peso de gerações inteiras. Uma frase dita por um avô — ainda que marcada por doença ou distorção — pode ressoar na alma de uma pessoa, mesmo décadas depois, sem que ela compreenda por quê. Esse é o campo das lealdades sistêmicas invisíveis, que operam como vínculos profundos, quase inconscientes, entre membros de uma família, atravessando gerações e perpetuando padrões de dor, vergonha ou inadequação.
O caso da mulher que cresceu ouvindo do próprio pai que era “feia” e que, por isso, precisava estar sempre arrumada, é um exemplo claro dessa dinâmica. Embora hoje idosa e ciente da condição psiquiátrica do pai, que era esquizofrênico, ela permanece refém de uma imagem negativa de si mesma, sentindo-se envergonhada de mostrar sinais naturais da idade. A vergonha de usar bengala ou parecer "velha" na rua não é apenas vaidade, mas uma dor ancestral internalizada — uma distorção da própria percepção corporal enraizada na lealdade inconsciente a uma narrativa familiar dolorosa.
Influência Transgeracional e Transtorno Dismórfico Corporal
O transtorno dismórfico corporal é caracterizado por uma preocupação obsessiva com falhas imaginárias ou mínimas na aparência física. Em contextos familiares onde houve críticas, rejeição ou idealização excessiva da imagem, essas inseguranças podem ser amplificadas e internalizadas ao longo do tempo. Quando olhamos para essa condição vemos que ela pode ter raízes não apenas na história pessoal da pessoa, mas também na história dos seus antepassados — histórias de exclusão, humilhação, misoginia ou perfeccionismo.
A necessidade de pertencimento, a ordem (respeito à hierarquia e tempo de chegada) e o equilíbrio entre dar e receber são importantes em nossa formação. Quando alguém é excluído ou desrespeitado (por exemplo, chamada de feia repetidamente), há uma quebra nessas ordens. Muitas vezes, os descendentes carregam, inconscientemente, esse peso para "compensar" o que foi injusto, tentando reparar ou manter a conexão com aquele membro.
Essa é a lealdade sistêmica: o vínculo invisível que faz com que a neta permaneça ligada à dor da mãe, ou que até carregue a vergonha de uma exclusão vivida por sua mãe ou avó. Ela talvez também se arrume compulsivamente não por vaidade, mas por honrar uma exclusão ancestral, repetindo padrões que sente serem "naturais", mas que na verdade são herdados.
Caminhos para a Cura Sistêmica
É possível identificar e transformar essas dinâmicas. Ao colocar em cena representantes para os membros da família e para os sentimentos envolvidos (vergonha, exclusão, perfeição, aparência), revela-se o que está oculto: a dor que não foi reconhecida, o membro que foi injustamente julgado, o amor mal compreendido.
O trabalho psicoterapêutico permite que essa mulher, ou qualquer pessoa presa em um ciclo semelhante, possa dizer internamente: “Eu vejo a sua dor. Mas agora, eu escolho um novo caminho.” Reconhecendo que há algo que pertence ao passado e que não precisa mais ser carregado, a pessoa pode libertar-se das imagens distorcidas de si mesma e construir uma nova relação com o próprio corpo — baseada em amor, verdade e reconexão com a vida.
Tratamento do Transtorno de Imagem
O tratamento do Transtorno Dismórfico Corporal (TDC) envolve uma abordagem multidisciplinar, pois esse transtorno afeta tanto a percepção corporal quanto o funcionamento emocional e social da pessoa. Abaixo, explico as abordagens mais eficazes atualmente utilizadas:
1. Psicoterapia
A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) é o tratamento mais reconhecido para o TDC.
Reestruturação cognitiva: ajuda o paciente a identificar e questionar pensamentos distorcidos sobre sua aparência.
Exposição com prevenção de resposta: a pessoa é exposta gradualmente a situações temidas (ex: sair de casa sem maquiagem) sem realizar os rituais compensatórios (ex: se esconder, se arrumar excessivamente).
Treinamento de habilidades sociais: melhora da autoestima e enfrentamento da ansiedade social relacionada à imagem.
Outras abordagens psicoterapêuticas úteis:
Terapia de Aceitação e Compromisso (ACT)
Terapias psicodinâmicas, especialmente em casos com traumas de infância.
Constelação Familiar Sistêmica, como abordagem complementar, ajuda a identificar dinâmicas inconscientes e lealdades familiares relacionadas à imagem corporal e autoestima.
2. Medicamentos (Farmacoterapia)
Medicamentos são especialmente indicados em casos moderados a graves, ou quando há comorbidades como depressão, ansiedade ou TOC.
ISRSs (Inibidores Seletivos da Recaptação de Serotonina) são os mais usados:
Fluoxetina, sertralina, escitalopram, fluvoxamina, etc.
Doses geralmente mais altas do que as utilizadas para depressão.
Efeitos podem levar 8–12 semanas para serem notados.
3. Intervenções Psicoeducativas
Informar o paciente (e a família, quando possível) sobre o transtorno é essencial.
Ajuda a desmistificar os sintomas e a reduzir o estigma e a vergonha.
Estimula adesão ao tratamento e previne recaídas.
4. Evitar Cirurgias Estéticas
Pessoas com TDC frequentemente buscam procedimentos estéticos, acreditando que resolverão seus problemas — mas isso tende a agravar o quadro.
Importante conscientizar sobre o ciclo de insatisfação que se mantém mesmo após intervenções estéticas.
5. Apoio Familiar e Terapia de Grupo
Participação da família pode ser fundamental, especialmente para adolescentes ou adultos jovens.
Terapias em grupo permitem que o paciente veja que não está sozinho — isso pode aliviar a vergonha e favorecer o enfrentamento do problema.
6. Cuidados Complementares
Embora não sejam tratamentos principais, abordagens como:
Mindfulness
Yoga e práticas corporais conscientes
Terapias artísticas (dança, arte, teatro)
podem ajudar na reconexão com o corpo de forma saudável.
Duração e Prognóstico
O tratamento pode ser longo (meses ou anos), especialmente se o TDC for grave ou antigo. Mas, com adesão adequada e equipe especializada, há bons índices de melhora, embora recaídas sejam possíveis.