Autocuidado e feminismo

Minha mãe trabalhava muitooooo. Estava sempre estressada, correndo de um lado para o outro, gritando pra gente andar mais rápido, se apreçar. Quando virei mãe me vi no mesmo esquema, trabalhando em dois empregos, cuidando da casa, levando criança de um lado pra outro.

Aos 30 anos tive um piripaco e precisei passar por procedimentos cardíacos complexos. Eu era magra, comia bem (sou nutricionista), fazia atividade física. Mas não parava, não descansava, vivia estressada. Hoje, fala-se muito de autocuidado. Mas muito do que rola nas redes sociais está misturado com a venda de produtos (suplementos, roupas, artigos fitness, cursos inúteis) ou com uma obsessão pouco saudável com o corpo.  O autocuidado de que precisamos deve nos defender dessa cultura hostil e consumista.

Quando comecei a trabalhar com famílias de crianças com síndrome de Down percebi mães esgotadas, muitas vezes deprimidas ou à beira de um ataque de nervos. Em todos os eventos em que participo, dirijo-me a elas e falo da importância de preservarem sua saúde física, mental e emocional.

O autocuidado em diferentes contextos sociais

Trabalho com pessoas de todas as classes sociais. Tenho clientes de famílias ricas e que têm muito suporte. Possuem recursos financeiros de sobra para contratar nutricionista, cozinheira, personal trainer, massagista, motorista, babá e todos os terapeutas. Mesmo assim, o autocuidado não é automático. Se o acesso a todo o serviço que o dinheiro pode comprar não é um problema, muitas vezes restam as barreiras internas. Há culpa, há  medo, há crises emocionais, há dificuldade de organização, há dificuldade em priorizar as próprias necessidades.

Famílias de classe média relatam ainda falta de tempo, falta de suporte da equipe de saúde, impacto financeiro de tudo que há para se fazer e atingir, falta de apoio familiar, cansaço extremo. O autocuidado de promoção da saúde limitado muitas vezes leva a situações de crise, que estão aumentam o risco de problemas de saúde. Sem descanso de alta qualidade é comum que ao longo do tempo as mães sejam diagnosticadas com doenças autoimunes, problemas metabólicos ou doenças mentais.

Meu trabalho junto a associações de pessoas com trissomia do cromossomo 21 (síndrome de Down) coloca-me em contato com pessoas de todas as classes sociais. Mas não preciso nem mencionar a obviedade das dificuldades ainda maiores em pessoas com escassos recursos financeiros e grupos marginalizados (seja pela renda, pela cor, pelo gênero, pela sexualidade…). Nestes contextos o autocuidado é ainda mais importante.

As demandas impostas às mulheres são gigantes. Pelo mundo, realizam 76% do trabalho de cuidado não remunerado (dos filhos, de parentes, da sogra…). O autocuidado ajuda-as a assumir um pouco de poder sobre a própria vida, sobre o que funciona melhor para elas. O autocuidado pode ser uma ferramenta para que desafiem normas, afastando-as de papeis predefinidos por outras pessoas (marido, família, chefes, normas sociais, pressões do capitalismo etc). É uma forma de luta, uma insistência de que são importantes, dignas de atenção, cuidado, descanso. Se você apoia iniciativas de autocuidado para mulheres carentes, você ajuda outros movimentos a crescerem. Sem bem-estar, como temos energia para mudar o mundo? 

O cuidado não deve ser visto como uma desculpa para não fazer nada ou como uma atividade supérflua, mas como uma  necessidade. Começa com o saber dizer não (e para isso podem também precisar de apoio). Parte da valorização das coisas que melhoram a própria saúde física, mental e emocional. Trata-se de se colocar no topo de suas prioridades e colocar o poder de volta em suas próprias mãos.

Falar é fácil, colocar em prática...

Embora as mulheres de todas as classes sociais compreendam a importância do autocuidado, estudos mostram que quanto maiores são as restrições financeiras, quanto maior é a falta de suporte (especialmente familiar), quanto maiores são os compromissos externos, necessidades de cuidados infantis e responsabilidades domésticas, mais o autocuidado vai ficando em segundo plano. Se a mulher desenvolve também  problemas de saúde, tudo complica-se ainda mais.
Profissionais de saúde possuem uma grande responsabilidade, oportunizando recursos de autocuidado de baixo custo, já existentes online ou na própria comunidade. Organizações de bairro são fundamentais pois grandes deslocamentos impedem o autocuidado. O governo deve abraçar políticas educacionais (nas escolas, nos centros esportivos, nos centros de saúde e em outros locais de encontro) que discutam a importância do autocuidado e ferramentas práticas que possam ser utilizadas já. 

Vi durante a pandemia várias associações comunitárias desenvolvendo trabalhos online (de yoga, de meditação, de culinária). Foi lindo e espero que todas estas iniciativas continuem. Eu mesmo doo meu tempo produzindo conteúdos online. Só que nem todos possuem acesso fácil à internet. Existem várias outras formas de ajudar as famílias menos assistidas. Qual é a sua?

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/
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