Intolerância à histamina X Intoxicação por histamina

Certo dia, depois de um almoço à beira-mar, Pedro começou a sentir-se mal: o rosto ficou vermelho, o coração disparou e apareceu uma coceira pelo corpo. O médico do pronto-socorro explicou:
— “Pedro, o que você teve foi uma intoxicação por histamina, também chamada de síndrome escombroide.”

Ele explicou que, quando o peixe é mal conservado, as bactérias transformam a histidina do peixe em histamina. Se o alimento acumula muita histamina e a pessoa o ingere, o corpo recebe uma dose tóxica — muito além do que conseguiria degradar. Assim, o problema não está no corpo da pessoa, mas na quantidade de histamina no alimento.

“É como se tivesse tomado uma colher de pimenta pura”, disse o médico. “Até quem tem digestão perfeita sentiria os efeitos.”

Pedro melhorou rapidamente com tratamento e, da próxima vez, passou a escolher melhor o peixe fresco.

Algumas semanas depois, foi a vez de Inês, sua namorada, ter sintomas estranhos: vermelhidão, dor de cabeça, enjoo, barriga inchada e até um pouco de confusão mental — mas dessa vez, ela não tinha comido nada estragado.

— “Como é possível?”, pensou.

O médico explicou outro tipo de problema:
— “Inês, o seu caso parece uma intolerância à histamina.”

Diferente da intoxicação de Pedro, aqui o alimento estava bom. O problema era no organismo dela, que tinha dificuldade em degradar a histamina que existe naturalmente em vários alimentos (como queijos curados, vinho tinto, chocolate, peixe fresco, tomate e espinafre).

Essa degradação normalmente é feita por uma enzima chamada diamina oxidase (DAO), que age na mucosa intestinal. Mas, em algumas pessoas, a atividade da DAO é menor — por causas genéticas ou adquiridas (como uso de certos medicamentos, doenças intestinais ou alterações hormonais).

Assim, mesmo pequenas quantidades de histamina podem causar sintomas.
E como os recetores de histamina estão distribuídos em vários tecidos (pele, intestino, cérebro, vasos), os sintomas são muito variados — coceira, urticária, diarreia, dor de cabeça, palpitações, ansiedade... Isso torna o diagnóstico difícil, pois não há marcadores laboratoriais confiáveis.

No fim, Pedro e Inês aprenderam algo importante:

  • A intoxicação por histamina depende da dose ingerida e da conservação do alimento.

  • A intolerância à histamina depende da capacidade do corpo em degradá-la, sobretudo pela enzima DAO.

Desde então, Pedro cuida bem da conservação dos peixes, e Inês aprendeu a controlar sua alimentação e a identificar os alimentos que a fazem sentir-se melhor.

Metabolismo da histamina

A histamina é formada no corpo a partir do aminoácido L-histidina via histidina descarboxilase (tem B6 como cofator). Uma fração é exógena (vem de fora, de alimentos e da microbiota intestinal).

  • Degradação por duas vias principais:

    1. DAO (extracelular) → imidazol-acetaldeído → ácidos imidazolacéticos (excreção); exerce função “barreira” no intestino.

    2. Histamina-N-metiltransferase (HNMT) (intracelular) → Nτ-metil-histamina → metabolitos por MAO/ALDH.
      Polimorfismos (variações genéticas) de DAO/HNMT ajudam a explicar diferenças individuais.

  • Aumento luminal de histamina: ingestão, descarboxilação bacteriana (alguns lactobacilos/eneterobactérias), hemorragia GI, obstrução e sépsis (discussão ainda controversa).

Papel dos recetores H1–H4

Existem 4 receptores de histamina no corpo, envolvidos na resposta inflamatória e imune. Quando ativados, geram diferentes efeitos:

  • H1: inflamação/alergia, vasodilatação, permeabilidade vascular, broncoconstrição, motilidade intestinal e ritmos circadianos.

  • H2: secreção ácida gástrica, relaxamento muscular liso, modulação imunitária (↑IL-10, ↓IL-12; efeito oposto ao H1 em respostas Th1).

  • H3: SNC (autorreceptor), modula libertação de acetilcolina/serotonina/noradrenalina; associado a sono/atenção/epilepsia.

  • H4: imunitário (menos explorado) na sensibilidade visceral e peristalse.

Relações com doenças gastrointestinais

  • Síndrome do intestino irritável (SII-D): hiperplasia/hiperatividade de mastócitos, maior expressão de H1/H2 em mucosa e correlação entre mastócitos junto às fibras nervosas e dor abdominal; aumento de triptase e ativação de NF-κB.

  • DII e outras: a histamina e mastócitos participam em vias inflamatórias; a própria microbiota produtora de histamina pode ter efeitos pró- ou anti-inflamatórios conforme o contexto (p.ex., L. reuteri produtor de histamina mostrou efeitos anticarcinogénicos em modelos).

Diagnóstico: por que é difícil?

  • Sintomas inespecíficos (cutâneos, GI, neurológicos) e variáveis.

  • Marcadores laboratoriais incertos: atividade DAO sérica e outros testes têm utilidade limitada e falta de padronização; não existe “gold standard” universalmente aceite.

  • A avaliação costuma combinar história clínica, diário alimentar/sintomas, exclusão de alergia IgE-mediada, e resposta a dieta de baixo teor de histamina/reintrodução.

Tratamento (princípios)

  • Dieta de eliminação de baixo teor de histamina como base.

    • Alimentos mais problemáticos: ricos em histamina (queijos curados, peixes oleosos e marisco, carnes fermentadas/cruas curadas, vegetais fermentados, soja fermentada, vinho/cerveja) e libertadores endógenos(espinafre, tomate, citrinos, morango, beringela, abacate, papaia, banana, kiwi, ananás, ameixas).

    • Consumir carne/peixe apenas muito frescos.

  • Fármacos e suplementos:
    • Anti-H1; estabilizadores de mastócitos; mirtazapina (com propriedades anti-H1/H2).
    • Vitamina C e flavonoides (efeitos anti-oxidantes/estabilizadores).
    • Suplementos com DAO (origem porcina, gastro-resistentes) e rebentos de leguminosas (fonte vegetal com atividade DAO elevada).
    • Probióticos: abordagem em estudo; cepas diferem (algumas produzem histamina e podem piorar sintomas; outras podem modular inflamação).

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/