René Descartes — “Penso, logo existo” (Cogito, ergo sum).
No livro O erro de Descartes (1994) o neurologista António Damásio argumenta que Descartes cometeu um erro ao considerar que a razão poderia funcionar de forma totalmente independente das emoções.
Damásio sustenta que:
A emoção e o sentimento desempenham um papel essencial na tomada de decisões racionais.
O cérebro humano não separa razão e emoção como compartimentos distintos; eles estão profundamente interligados.
Pessoas com lesões nas áreas cerebrais responsáveis pelas emoções podem manter a capacidade lógica, mas têm extrema dificuldade em tomar decisões práticas e sociais.
Exemplo prático do livro: Damásio estudou pacientes com danos no córtex pré-frontal ventromedial, que afetaram suas emoções. Esses pacientes conseguiam raciocinar logicamente, mas suas decisões diárias eram ineficazes, muitas vezes desastrosas — como se lhes faltasse o “sinal emocional” necessário para guiar escolhas apropriadas.
Damásio defende que o pensamento racional é corporificado — isto é, depende do corpo e dos estados emocionais. Emoções são indispensáveis ao pensamento racional. A inteligência artificial (IA), livre de emoções, tomará decisões tão humanas como as nossas? Piores? Melhores?
Implicações para a nutrição
Embora o pesquisador não trate diretamente deste tema no livro "O erro de Descartes" podemos pensar nas implicações para a nutrição. A conexão ocorre quando consideramos como corpo, cérebro, emoção e comportamento alimentar estão interligados. Aqui estão algumas implicações:
1. Alimentação não é apenas uma escolha racional
A visão cartesiana sugeriria que comer bem depende apenas de decisões conscientes e racionais. Mas Damásio nos lembra que emoções, estados corporais e memórias afetivas têm papel decisivo na escolha alimentar.
Exemplo:
Muitas pessoas sabem o que deveriam comer (razão), mas não conseguem evitar certos alimentos em momentos de estresse, ansiedade ou tristeza (emoção).
Isso mostra que a regulação emocional é fundamental para hábitos alimentares saudáveis.
2. Conexão entre intestino e cérebro (eixo intestino-cérebro)
A crítica de Damásio ao dualismo reforça a ideia de que corpo e mente não são entidades separadas. Isso apoia a visão moderna de que o sistema digestivo influencia o cérebro e vice-versa.
A microbiota intestinal afeta o humor, a cognição e até decisões alimentares.
Emoções e estresse alteram o apetite, a digestão e a absorção de nutrientes.
3. Marcadores somáticos e hábitos alimentares
Damásio propôs que emoções do passado ficam gravadas no corpo como "marcadores somáticos" — sinais físicos que influenciam decisões futuras.
Implicação para a nutrição:
Se alguém associa conforto ou alívio emocional a certos alimentos (ex: doces na infância), esses alimentos se tornam "refúgios emocionais" na vida adulta.
Portanto, mudanças alimentares duradouras exigem trabalhar não só o plano alimentar, mas também os significados emocionais ligados à comida.
4. Atenção plena e presença corporal na alimentação
A crítica ao dualismo também valoriza a experiência corporal e sensorial como parte da consciência.
Isso dialoga com práticas como mindful eating (alimentação consciente), que promovem uma reconexão com sinais internos de fome, saciedade e prazer.
Comer com consciência reduz o comer impulsivo e ajuda a restaurar uma relação mais saudável com a comida.
5. Educação nutricional mais integrativa
A visão de Damásio sugere que intervenções nutricionais devem ir além da informação técnica e considerar:
Emoções associadas à alimentação
Vínculos culturais e afetivos com a comida
A importância da empatia, escuta e acolhimento no atendimento nutricional
A partir da crítica de António Damásio ao dualismo mente-corpo, entendemos que a nutrição é uma prática biológica, emocional e relacional. Comer não é apenas uma questão de "vontade" ou "informação correta", mas envolve memórias, sentimentos e o corpo como um todo.