As fibras dietéticas são componentes dos alimentos que escapam da digestão no trato gastrointestinal superior e chegam intactas ao cólon, onde são fermentadas por bactérias intestinais. Esse processo tem papel fundamental na saúde intestinal e no equilíbrio da microbiota.
Fatores que Influenciam a Fermentação das Fibras
A fermentabilidade das fibras varia bastante e depende de várias características:
Grau de polimerização: fibras com cadeias menores (baixo grau de polimerização) são fermentadas mais rapidamente.
Tamanho de partícula: partículas menores são mais facilmente acessadas por enzimas microbianas.
Solubilidade e viscosidade: fibras solúveis e viscosas têm maior retenção de água, o que pode limitar seu contato com microrganismos e tornar sua fermentação mais lenta ou até resistente.
Essas propriedades determinam quais tipos de bactérias conseguem degradar cada tipo de fibra, moldando assim uma microbiota intestinal específica para diferentes tipos de fibras.
Como as Bactérias Intestinais Decompõem as Fibras
A degradação das fibras depende de bactérias que produzem enzimas especiais chamadas CAZymes (enzimas ativas em carboidratos), como:
Glicosídeo hidrolases (GHs)
Polissacarídeo liases (PLs)
Essas enzimas, ausentes no corpo humano, são essenciais para a quebra dos polissacarídeos presentes nas fibras.
A Cooperação entre as Bactérias
No intestino, ocorre um processo conhecido como alimentação cruzada. Isso significa que algumas bactérias decompõem as fibras parcialmente (degradadores primários), liberando produtos que servem de alimento para outras bactérias (degradadores secundários).
Um exemplo é a inulina (um tipo de frutano), que é degradada por Bifidobactérias. Elas liberam açúcares que podem ser usados por outras bactérias produtoras de butirato, um ácido graxo benéfico para o intestino.
Produtos da Fermentação das Fibras
Durante esse metabolismo bacteriano, são produzidos vários compostos importantes:
Gases: como hidrogênio (H₂), metano (CH₄) e dióxido de carbono (CO₂)
Ácidos orgânicos: como lactato e succinato
Ácidos graxos de cadeia curta (AGCC): especialmente acetato, propionato e butirato, que trazem inúmeros benefícios à saúde intestinal e sistêmica.
AGCC: Produtos da Fermentação com Impacto Sistêmico
Durante a fermentação das fibras no intestino grosso, são produzidos ácidos graxos de cadeia curta (AGCC) — principalmente acetato, propionato e butirato. Esses compostos são essenciais para a saúde intestinal e vão além disso:
Butirato é a principal fonte de energia para os colonócitos, as células que revestem o cólon.
Acetato e propionato, após absorção, seguem para o fígado via circulação portal e atuam como moléculas sinalizadoras.
Esses AGCC interagem com receptores celulares específicos (GPCRs, como GPR41, GPR43 e GPR109A), ativando respostas em diferentes órgãos — como cérebro, pulmões, fígado, pâncreas e tecido adiposo. Eles influenciam:
A homeostase metabólica
A imunidade
A função da barreira intestinal
A saúde óssea e cerebral
A prevenção de inflamações e câncer
Além disso, os AGCC estão associados à regulação do apetite e metabolismo da glicose, estimulando hormônios como GLP-1 e PYY, o que pode beneficiar pessoas com diabetes tipo 2.
Fibras Dietéticas e Diversidade da Microbiota Intestinal
A ingestão de fibras não apenas alimenta as bactérias do intestino, como também modula sua diversidade e composição. Estudos mostram que dietas ricas em fibras — como a mediterrânea, vegetariana ou não industrializada — favorecem uma comunidade microbiana diferente e mais rica do que dietas ocidentais típicas.
Diversidade Beta e Alfa: O Que Isso Significa?
Diversidade beta (variação entre indivíduos): aumenta de forma consistente com a ingestão de fibras.
Diversidade alfa (variedade dentro de um indivíduo): os resultados são mais variados. Embora dietas ricas em vegetais e grãos tendam a promover essa diversidade, em alguns casos, especialmente em intervenções específicas, foi observada até uma leve redução.
Isso pode ocorrer porque dietas ricas em fibras promovem o crescimento de cepas benéficas específicas, que competem com outras, reduzindo temporariamente a diversidade, mas melhorando a funcionalidade.
Como Diferentes Fibras Afetam Diferentes Microrganismos
Diferentes tipos de fibras alimentam diferentes grupos bacterianos. Estudos clínicos demonstram que fibras como:
Inulina, goma guar, amido resistente, FOS, GOS e arabinoxilanos
promovem consistentemente o crescimento de Bifidobacterium, além de:Faecalibacterium e Ruminococcus (especialmente com amido resistente)
Lactobacillus (com fibras ricas em galactose ou frutose)
Akkermansia e Roseburia, entre outros
Essas mudanças são observadas geralmente após 1 a 2 semanas de intervenção e se mantêm estáveis durante o período da dieta.
Curiosamente, embora essas fibras aumentem os produtores de AGCC, nem sempre há aumento das concentrações fecais desses ácidos. Isso pode ocorrer por diluição do conteúdo fecal, já que dietas ricas em fibras aumentam o volume das fezes.
Efeitos da Fibra Alimentar na Modulação de Gêneros Bacterianos Específicos
Bifidobacterium
A fibra alimentar apresenta notável efeito bifidogênico. Estudos mostraram que fibras como inulina, goma guar, GOS, FOS e AXOS aumentam significativamente a abundância de espécies do gênero Bifidobacterium. Por exemplo, a inulina aumentou sua proporção de 6,69% para 15,07%, e o GOS elevou de 7% para 34,8%. Esses efeitos foram observados mesmo em dosagens moderadas e em intervenções de curta duração.
Faecalibacterium
Fibra de cadeia longa, como inulina, goma guar e trigo integral, está associada ao aumento de Faecalibacterium, um importante produtor de butirato. O trigo integral e RS2 demonstraram maior eficácia, dobrando ou triplicando sua abundância.
Ruminococcus
O RS2 promove de forma consistente Ruminococcus bromii, um degradador primário de amido resistente. No entanto, outras fibras, como arabinogalactano e goma guar, também estimularam esse gênero, embora a inulina tenha mostrado correlação negativa. O efeito parece depender da estrutura da fibra e da microbiota basal.
Lactobacillus
Fibras com frutose e galactose, como inulina e GOS, promovem o crescimento de Lactobacillus. A inulina de cadeia muito longa e a estaquiose derivada de raízes foram especialmente eficazes, elevando os níveis fecais desse gênero em múltiplos estudos.
Prevotella
Apesar de Prevotella estar associada a dietas ricas em fibras em populações que não consomem industrializados, intervenções com fibra alimentar isolada raramente induzem seu crescimento. A abundância de Prevotella parece refletir a ingestão habitual de carboidratos complexos a longo prazo, e não respostas de curto prazo.
Limite de Corte da Ingestão de Fibra Alimentar na Modulação da Microbiota
Estudos mostraram que a resposta da microbiota intestinal à fibra alimentar é dose-dependente e varia conforme o tipo de fibra e a composição microbiana basal. Ensaios com dosagens múltiplas revelaram os seguintes pontos principais:
Aumento consistente de Bifidobacterium com inulina, GOS, FOS, goma arábica e AXOS, geralmente com efeitos detectáveis a partir de 3–5 g/dia.
Doses elevadas nem sempre intensificam os efeitos e podem até reduzi-los (ex: goma arábica).
A eficácia da fibra depende da abundância inicial de microrganismos: indivíduos com baixos níveis de Bifidobacterium responderam melhor às intervenções.
Maltodextrina resistente teve efeitos microbiológicos mais variados e menos previsíveis, com resultados dependentes da abundância basal e do tipo de fibra.
Modulação da Microbiota por Fibra em Pacientes com Diabetes
Pacientes com diabetes tipo 2 apresentam alterações da microbiota intestinal que podem ser moduladas por fibra alimentar. Estudos clínicos demonstram que:
GOS pode aumentar Bifidobacterium, mas nem sempre melhora o metabolismo glicêmico.
Intervenções com fibras mistas e produtoras de AGCC (como inulina) mostraram melhora nos níveis de HbA1c, glicemia, insulina e HOMA-IR, associada ao aumento de gêneros benéficos (Bifidobacterium, Roseburia) e redução de outros potencialmente prejudiciais.
A resposta à fibra varia entre os pacientes e parece estar associada à composição microbiana individual prévia.
Fatores que Influenciam a Resposta à Fibra
A resposta da microbiota intestinal à suplementação com fibras não é uniforme entre os indivíduos. Diversos fatores modulam a magnitude e a direção dos efeitos microbianos, metabólicos e clínicos. A compreensão dessas variáveis é essencial para personalizar intervenções dietéticas baseadas em fibra.
Composição Basal da Microbiota
A microbiota pré-existente é o principal determinante da resposta a fibras. Indivíduos com abundância inicial elevada de certos microrganismos, como Bifidobacterium ou Ruminococcus bromii, tendem a exibir menor resposta à suplementação dessas fibras. Por outro lado, microbiotas com menor diversidade ou dominância de gêneros patobiontes apresentam maior potencial de modulação.
Dieta Habitual
Dietas cronicamente pobres em fibras levam a uma microbiota menos preparada para fermentar polissacarídeos complexos, o que pode limitar os efeitos da suplementação. Em contrapartida, dietas ricas em carboidratos vegetais complexos favorecem o crescimento sustentado de bactérias fermentadoras, como Prevotella e Faecalibacterium, mesmo na ausência de suplementos.
Genética e Fatores Hospedeiros
Variantes genéticas relacionadas ao sistema imune, secreção de mucina e digestão de carboidratos afetam a composição microbiana e a resposta à fibra. Além disso, características como idade, sexo, índice de massa corporal e metabolismo basal influenciam a fermentação e a produção de SCFAs.
Uso de Medicamentos
Antibióticos, metformina, inibidores da bomba de prótons e laxantes são exemplos de fármacos que alteram significativamente a composição da microbiota. O uso concomitante pode potencializar ou atenuar os efeitos da fibra sobre populações bacterianas específicas.
Estado de Saúde e Doenças de Base
Condições como diabetes tipo 2, síndrome metabólica, doença inflamatória intestinal e síndrome do intestino irritável estão associadas a disbioses específicas que modulam a resposta à fibra. Pacientes com inflamação intestinal ativa, por exemplo, podem tolerar pior certos tipos de fibra fermentável.
Tipo, Dose e Forma da Fibra
Cada fibra possui propriedades físico-químicas distintas, como viscosidade, fermentabilidade e solubilidade, que determinam sua capacidade de alterar a microbiota. A dose administrada, o tempo de intervenção e a forma (isolada, combinada ou incorporada em alimentos) também impactam os resultados.