Os ácidos biliares são moléculas produzidas a partir do colesterol e têm um papel fundamental na digestão e absorção de gorduras e vitaminas lipossolúveis no intestino. Eles podem ser classificados em ácidos biliares primários e ácidos biliares secundários, com base em onde e como são produzidos.
Ácidos Biliares Primários
Os ácidos biliares primários são sintetizados diretamente no fígado a partir do colesterol e incluem:
Ácido cólico
Ácido quenodesoxicólico
Esses ácidos são produzidos pelos hepatócitos (células do fígado) e são secretados na bile. Eles entram no intestino delgado, onde exercem algumas funções:
Digestão e absorção de gorduras
Ativação de receptores
Estímulo para a liberação de hormônios (GLP1, PYY)
Propriedades antimicrobianas
Ácidos Biliares Secundários
Os ácidos biliares secundários são formados a partir dos ácidos biliares primários pela ação de bactérias no intestino grosso. Quando os ácidos biliares primários chegam ao cólon, são modificados pela microbiota intestinal através da remoção de um grupo hidroxila. Os principais ácidos biliares secundários são:
Ácido desoxicólico (derivado do ácido cólico)
Ácido litocólico (derivado do ácido quenodesoxicólico)
Para produção dos ácidos graxos secundários bactérias como Firmicutes, Actinobacteria, Bacteroides fazem reações de hidrólise (desconjungação), desidroxilação (Firmicutes - Clostridium e Extibacter spp), oxidação e epimerização (Actinobacteria, Proteobacteria, Firmicutes e Bacteroidetes), dessulfatação (Clostridium, Peptococcus, Fusobacterium, Proteobacterium, Pseudomonas spp), amidação ou conjugação (Bacteroidetes, Bifidobacterias, Enterococcus, Enteroclsoter), além de esterificação (Collins et al., 2022).
Ciclo êntero-hepático
Após exercerem suas funções no intestino, uma grande parte dos ácidos biliares é reabsorvida no íleo (a porção final do intestino delgado) e retornam ao fígado através da circulação portal. Esse processo é conhecido como o ciclo êntero-hepático. Apenas uma pequena fração é excretada nas fezes, e o fígado substitui essa perda sintetizando novos ácidos biliares.
Papel no Sistema Nervoso Central
Os ácidos biliares, tradicionalmente associados ao fígado e ao sistema digestivo, também desempenham papéis importantes no sistema nervoso central, incluindo o cérebro. Recentemente, a pesquisa tem revelado que os ácidos biliares podem ter funções neuroprotetoras e neuromoduladoras, o que abriu um novo campo de investigação sobre sua relevância em doenças neurológicas.
Os ácidos biliares são capazes de atravessar a barreira hematoencefálica (uma barreira seletiva que protege o cérebro de substâncias tóxicas presentes no sangue), embora em concentrações muito menores do que as encontradas no fígado ou intestino. Estudos sugerem que tanto os ácidos biliares primários quanto os secundários podem atingir o cérebro através da circulação sistêmica. A presença de transportadores específicos para ácidos biliares nas células endoteliais da barreira hematoencefálica facilita essa passagem.
Funções dos ácidos biliares no cérebro
Neuroproteção: Certos ácidos biliares têm propriedades anti-inflamatórias e antioxidantes, o que pode ajudar a proteger as células nervosas de danos relacionados ao estresse oxidativo e inflamação.
Por exemplo, o ácido ursodesoxicólico (UDCA), um ácido biliar secundário, tem demonstrado efeitos neuroprotetores em modelos experimentais de doenças neurodegenerativas, como a doença de Parkinson e Alzheimer e esclerose lateral amiotrófica (ELA). Por exemplo, um ácido biliar derivado do ácido ursodesoxicólico, o ácido tauroursodesoxicólico (TUDCA), tem sido empregado para tratamento de muitas doenças hepato biliares e também na ELA, doença neurodegenerativa complexa que afeta os neurônios motores, levando à perda progressiva da função muscular. A hipótese de que a suplementação de TUDCA (em doses maiores que 1.000 mg/dia) poderia ser benéfica para pacientes com ELA, aumentando a sobrevida, baseia-se em na propriedade neuroprotetora (Albanese et al., 2022; Zucchi et al., 2023). Um ponto é que ácidos biliares ajudam a regular a atividade de enzimas antioxidantes como superóxido dismutase e catalase. Em geral, começa-se com doses baixas e o aumento é gradativo.
Modulação da sinalização celular: Os ácidos biliares podem interagir com receptores celulares no cérebro, como o receptor FXR (receptor farnesoide X) e o TGR5 (receptor de membrana acoplado à proteína G). Esses receptores influenciam a regulação da inflamação, sobrevivência celular, e processos metabólicos, que são importantes na função cerebral.
Influência no metabolismo cerebral: Os ácidos biliares também podem influenciar o metabolismo energético no cérebro, regulando o uso de glicose e lipídios pelas células nervosas, o que é importante para manter o funcionamento normal dos neurônios.
Alterações em doenças hepáticas e neurológicas
Distúrbios no metabolismo dos ácidos biliares, como em doenças hepáticas, podem afetar o cérebro, levando a condições como a encefalopatia hepática, em que há alterações cognitivas e motoras. O acúmulo de substâncias tóxicas no cérebro, devido à disfunção hepática, pode estar relacionado à disfunção do ciclo dos ácidos biliares.
Disbiose e doenças neurodegenerativas
É importante destacar que, frequentemente, pessoas com doenças neurodegenerativas possuem um perfil microbiano alterado (disbiose), gerando redução na quantidade de ácidos biliares secundários. Além da disbiose, o uso de antibióticos e o sedentarismo contribuem para a redução de ácidos biliares secundários. Por outro lado, a dieta rica em fibras melhora o metabolismo do colesterol e a a produção destes ácidos biliares secundários.
Perspectivas terapêuticas
Devido às suas propriedades neuroprotetoras e moduladoras, os ácidos biliares estão sendo explorados como potenciais tratamentos para doenças neurodegenerativas. O ácido ursodesoxicólico (UDCA), em particular, já está sendo testado em ensaios clínicos para tratar algumas doenças:
Doença de Alzheimer: Alguns estudos sugerem que ácidos biliares, como o ácido tauroursodesoxicólico (TUDCA), podem reduzir a acumulação de proteínas beta-amiloide, que estão associadas ao desenvolvimento da doença de Alzheimer.
Doença de Parkinson: O UDCA tem sido investigado como uma terapia potencial para melhorar a função mitocondrial e reduzir a morte neuronal associada à doença de Parkinson.
Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA): Como vimos, pesquisas também exploram o papel dos ácidos biliares na proteção dos neurônios motores, que são afetados na ELA.