Os avanços na descoberta de genes melhoraram nossa compreensão da fisiopatologia da ataxia cerebelar. No entanto, o tratamento continua sendo de suporte e sintomático. Ainda assim, um grupo limitado de condições atáxicas progressivas heterogêneas pode melhorar com tratamentos específicos da doença, se instituídos precocemente, algumas genéticas, outras desencadeadas pelo ambiente.
Ataxia com deficiência de vitamina E - Ataxia com deficiência de vitamina E (ADVE) é uma doença autossômica recessiva (AR) decorrerente de mutações na proteína de transferência de alfa-tocoferol (gene TTPA) no cromossomo 8q13. Ela se apresenta como uma síndrome de ataxia espinocerebelar lentamente progressiva que se assemelha à ataxia de Friedreich (AF). Algumas das características compartilhadas de AVED e AF incluem ataxia, perda de reflexos tendinosos profundos, distúrbios vibratórios e sensoriais, fraqueza muscular, disartria.
Pacientes com AVED têm um curso mais prolongado, com neuropatia leve. A idade de início da AVED é geralmente entre 5 e 15 anos e raramente após os 20 anos. Altas doses diárias de vitamina E (800 mg/d) fracionada ao longo do dia normalmente levam à melhora neurológica, embora a recuperação possa ser moderada e incompleta. Os resultados da suplementação de vitamina E são mais benéficos se iniciados com duração da doença inferior a 15 anos.
Abetalipoproteinemia - causada por mutações no gene da grande subunidade da proteína de transferência de triglicerídeos microssomais (MTTP), localizada no cromossomo 4q22-24. Quando a MTTP sofre mutação, há redução de colesterol, as lipoproteínas contendo apolipoproteína B plasmática estão ausentes, o que leva ao comprometimento das vitaminas lipossolúveis, especialmente a vitamina E. Os sintomas começam antes dos 20 anos. Esses pacientes apresentam hiporreflexia, propriocepção e sentido vibratório reduzidos, fraqueza muscular e ataxia espinocerebelar.
Investigações laboratoriais específicas incluem esfregaço de sangue mostrando acantocitose (alterações na membrana das hemácias) e um perfil lipídico revelando lipoproteína de baixa densidade (LDL-c) quase ausente (<0,1 mmol/L), triglicerídeos (<0,2 mmol/L) e apolipoproteína B (<0,1 g/L). O diagnóstico é confirmado por testes moleculares, por sequenciamento do MTTP.
O tratamento envolve modificação da dieta e reposição de vitaminas, o que evitará complicações neurológicas se iniciado precocemente. A modificação da dieta consiste em uma dieta com baixo teor de gordura (menos de 30% das calorias) e reposição de vitamina E e A, que são consideradas retardadoras da degeneração da retina e complicações neurológicas. Podem ser prescritas enzimas para minimizar a má absorção de gorduras. Grandes doses de vitamina E (100-300 mg/kg/d) são necessárias para prevenir a deterioração neurológica, juntamente com suplementação de vitamina A (100-400 UI/kg/d) que pode normalizar os níveis séricos (ponto de boa prática). O uso de triglicerídeos de cadeia média (TCM) pode ajudar a corrigir a má-nutrição. TCM é absorvido e transportado pela albumina, ao invés de quilomicrons.
Tipos de TCM
Existem quatro tipos diferentes de TCMs:
Ácido capróico (C6): é o mais eficiente na absorção e absorção, mas tem um cheiro e sabor bastante ruins, quando isolado. Presente naturalmente no óleo de palma e laticínios integrais.
Ácido caprílico (C8) ou ácido octanóico: ajuda a manter o intestino saudável. Rapidamente absorvido. Aumenta corpos cetônicos na corrente sanguínea 3 vezes mais rápido que C10 e 6 vezes mais rápido que C12. Cheiro e sabor melhores do que C6. Presente naturalmente em marcas de TCM e no óleo de coco.
Ácido cáprico (C10): ajuda a manter o intestino saudável. Rapidamente absorvido, contudo 3 vezes mais lentamente que C8. Mas, a mistura nos produtos é interessante para manter os níveis de corpos cetônicos mais constantes no plasma. Presente naturalmente em marcas de TCM e no óleo de coco.
Ácido láurico (C12): ajuda a manter a microbiota saudável. Tem ação antifúngica. Leva mais tempo para ser absorvido e pode elevar mais os níveis de colesterol plasmáticos do que C8 e C10. Disponível naturalmente no óleo de coco e nos laticínios integrais.
Destes, C8 e C10 são os mais associados à perda de peso e encontrados em marcas como:
Ácidos graxos essenciais podem ser necessários em dietas mais restritas em gorduras (ou 1 colher de chá ao dia de azeite, por exemplo). Enzimas hepáticas devem ser monitoradas. A suplementaçao de vitamina D também deve ser considerada e baseada nos resultados do exame de sangue, assim como vitamina K (5 a 35 mg/semana). Avaliar também hemograma, ferritina, folato e B12 e corrigir possíveis inadequações.
Xantomatose cerebrotendinosa - distúrbio autossômico recessivo de armazenamento de lipídios causado por uma mutação da enzima mitocondrial 27-esterol hidroxilase (gene CYP27) no cromossomo 2, que faz parte da via de síntese de ácidos biliares hepáticos. A redução na síntese desses ácidos leva a um aumento no colestanol sérico e álcoois biliares urinários e à deposição desses metabólitos como lesões xantomatosas em vários tecidos, particularmente no cérebro, tendões e lentes oculares. Os sintomas neurológicos geralmente começam aos 20 anos de idade e incluem ataxia cerebelar, paraparesia espástica, convulsões, neuropatia periférica sensório-motora, sinais extrapiramidais, problemas psiquiátricos, comprometimento cognitivo.
Características não neurológicas associadas incluem cataratas congênitas/juvenis, xantomas de tendão (particularmente sobre o tendão de Aquiles), aterosclerose prematura, osteoartrite, fraturas esqueléticas, pé cavo, insuficiência pulmonar, endocrinopatias, diarreia crônica, cálculos renais e hepáticos. O diagnóstico pode ser confirmado testando os níveis de colestanol sérico e os níveis de álcool biliar urinário.
Atrofia global e lesões parenquimatosas na ressonância magnética, neuropatia axonal em estudos de condução nervosa, tempos de condução central atrasados em potenciais evocados visuais, auditivos do tronco cerebral e somatossensoriais e lentidão difusa com descargas paroxísticas na eletroencefalografia são tipicamente observados. É tratável com suplementação oral de ácido quenodesoxicólico (ácido biliar) em uma dose de 250 mg três vezes ao dia. Iniciar o tratamento o mais cedo possível é fundamental para prevenir a deterioração neurológica.
Ataxia cerebelar autossômica recessiva devido à deficiência de coenzima Q10 - As deficiências de coenzima Q10 (CoQ10) são caracterizadas por uma deficiência primária de CoQ10 devido a mutações em genes que codificam enzimas de biossíntese de CoQ10 que são autossômicas recessivas. A deficiência secundária de CoQ10 está relacionada a mutações que afetam indiretamente a biossíntese de CoQ10. As mutações causais identificadas inicialmente na forma atáxica da deficiência de CoQ10 foram detectadas no gene APTX, que codifica a aprataxina - o gene causador da ataxia com apraxia oculomotora 1.
A deficiência de CoQ10 está associada a características neurológicas sobrepostas amplamente divididas em cinco fenótipos clínicos principais, incluindo encefalomiopatia, doença multissistêmica infantil grave, nefropatia, miopatia isolada e ataxia cerebelar. Uma síndrome cerebelar lentamente progressiva é o fenótipo mais comum relacionado à deficiência de CoQ. Os pacientes se manifestam com ataxia de marcha e, com o tempo, desenvolvem disartria proeminente, ataxia de membros, reflexos rápidos de alongamento muscular de extremidades inferiores e pequenas anormalidades em movimentos oculares sacádicos e de perseguição suave.
A medição direta de CoQ10 no músculo esquelético por cromatografia líquida de alta eficiência é o teste mais confiável para o diagnóstico. A resposta à terapia de reposição na forma atáxica da deficiência de CoQ10 é variável, variando de bom resultado clínico a benefício insignificante após a suplementação de CoQ10 em vários pequenos relatórios. Os autores usaram CoQ10 30 mg/kg/d por via oral três vezes ao dia na deficiência primária de CoQ10.
Ataxia de Friedreich - doença degenerativa autossômica recessiva causada por uma expansão instável de repetição tripla GAA no gene que codifica a frataxina, uma proteína mitocondrial envolvida na biossíntese do cluster ferro-enxofre. A síntese reduzida de frataxina leva à interrupção da biossíntese ferro-enxofre, sobrecarga de ferro mitocondrial e aumento da sensibilidade ao estresse oxidativo. O início dos sintomas ocorre tipicamente antes dos 25 anos, com ataxia precoce dos membros e tronco e ausência de reflexos de alongamento muscular. Perda da posição articular e do senso de vibração, disfunção do neurônio motor superior e disartria eventualmente ocorrem em todos os pacientes. Cardiomiopatia é vista em dois terços dos pacientes.
As estratégias terapêuticas tentadas são 1) aumentar os níveis de frataxina no nível transcricional por inibidores da histona desacetilase (HDAC) ou o nível de proteína pela eritropoietina humana recombinante. Além dos medicamentos, existem compostos extraídos de plantas que inibem histona desacetilase. Suplementos como resveratrol, curcumina, catequinas do chá verde, limoneno, beta-cariofileno, suforafano, genisteína podem ser indicados; 2) usar antioxidantes como a coenzima Q10 e vitamina E; 3) reduzir o consumo de carne vermelha. Pode ser necessário o uso de quelantes de ferro para reduzir os estoques de ferro mitocondrial com deferiprona; e 4) melhorar o metabolismo energético pela suplementação de L-carnitina e creatina.
Doença de Refsum - doença autossômica recessiva rara do metabolismo de ácidos graxos, causada na maioria dos casos por mutações do gene da enzima peroxissomal fitanoil-CoA hidroxilase no cromossomo 10. A proteína peroxissomal catalisa a primeira etapa da α-oxidação do ácido fitânico. Uma tétrade diagnóstica de retinite pigmentosa, ataxia cerebelar, polineuropatia e alto teor de proteína no líquido cefalorraquidiano (LCR) sem pleocitose foram encontrados em quase todos os pacientes. É caracterizada por surdez neurossensorial, anosmia, anormalidades esqueléticas, ictiose, insuficiência renal, cardiomiopatia ou arritmias como características associadas.
O início ocorre tipicamente por volta dos 20-30 anos de idade, com cegueira noturna como a manifestação mais precoce. Os sintomas estão relacionados à visão falha, extremidades fracas ou marcha instável. Devido à α-oxidação prejudicada de ácidos graxos de cadeia ramificada, o ácido fitânico, encontrado principalmente em laticínios, carne e peixe, acumula-se em altos níveis na gordura corporal.
A análise da concentração de ácido fitânico no plasma/soro é usada para confirmar o diagnóstico. A restrição de alimentos de origem animal interrompe a progressão da doença na maioria dos casos. O objetivo do tratamento é a redução da ingestão de ácido fitânico para menos de 10 mg/dia (ingestão diária normal - 50-100 mg). Condições estressantes, como perda rápida de peso e doenças, podem resultar na mobilização de ácido fitânico dos estoques de gordura, causando piora repentina dos sintomas ou até mesmo uma apresentação aguda semelhante à síndrome de Guillain-Barré.
Deficiência do transportador de glicose tipo 1 - A síndrome da deficiência do transportador de glicose tipo 1 (GLUT1) é um distúrbio neurometabólico autossômico dominante causado pelo transporte de glicose perturbado pela BHE. A doença é causada por mutações no gene que codifica o transportador GLUT1 (SLC2A1; 138140) no cromossomo 1p35-p31.3. A deficiência de GLUT1 tem diversas manifestações fenotípicas que vão desde deficiência intelectual e epilepsia até comprometimento motor. Pode se apresentar como distúrbios complexos de movimento ou como uma síndrome de ataxia dominante.
Pacientes com o fenótipo atáxico geralmente apresentam ataxia de membros, disartria, dificuldades cognitivas sutis e outros distúrbios de movimento, principalmente distonia facial e de membros. A marcha atáxica pode ocorrer em 70% dos pacientes (35% têm marcha puramente atáxica e 35% têm marcha espástica atáxica). Os distúrbios de movimento são paroxísticos em alguns pacientes devido a estados exacerbados de deficiência induzidos por atividade física, fadiga, jejum, ansiedade, excitação, baixas cetonas e baixa adesão alimentar ao tratamento. A marca registrada desse distúrbio é a baixa concentração de glicose no LCR no cenário de normoglicemia com uma razão LCR/glicemia de 0,4. O diagnóstico abrange a análise de um ensaio de captação de glicose eritrocitária, que é um teste sensível para deficiência de GLUT-1. A dieta cetogênica pode ser eficaz no tratamento das manifestações da doença e na interrupção da progressão em 40% a 70% na maioria dos pacientes.
Ataxia do glúten - ataxia esporádica e adquirida, de início insidioso (lento e gradual) com marcadores sorológicos positivos para sensibilidade ao glúten. Os pacientes apresentam na idade adulta síndrome de ataxia cerebelar progressiva pura de início insidioso. Achados oculares de disfunção cerebelar, incluindo nistagmo evocado pelo olhar, são vistos na maioria dos pacientes. Mais de 90% dos pacientes com ataxia do glútena pode não ter sintomas gastrointestinais. Um terço dos pacientes tem achados histopatológicos consistentes com enteropatia. Há evidências de atrofia cerebelar na ressonância magnética na maioria dos casos.