Sindemia Global: Como Obesidade, Desnutrição e Crise Climática Estão Interligadas

A PEC da Devastação, que refere-se ao Projeto de Lei (PL) 2.159/2021, é um projeto que altera as regras de licenciamento ambiental no Brasil. Este PL é conhecido como "PL da Devastação". Visa flexibilizar a regulamentação ambiental e é visto como um retrocesso significativo na proteção do meio ambiente, com o potencial de causar danos irreversíveis aos ecossistemas, aos povos tradicionais e ao clima global.

Vivemos um momento histórico em que múltiplas crises de saúde pública e ambientais coexistem e se potencializam mutuamente. Entre elas, destaca-se uma complexa e silenciosa realidade: a sindemia global. Este termo, aparece pela primeira vez em 2019 na revista The Lancet e descreve a interação sinérgica entre três grandes desafios contemporâneos: obesidade, desnutrição e mudanças climáticas (Norton, 2019).

Mais do que epidemias simultâneas, esses fenômenos estão interligados por mecanismos sociais, econômicos, ambientais e políticos que se reforçam mutuamente, afetando desproporcionalmente as populações mais vulneráveis. Compreender a sindemia é essencial para formular soluções integradas e eficazes.

1. Entendendo o Conceito de Sindemia

O termo sindemia é uma junção de “sinergia” e “epidemia”. Ele representa a ideia de que certas condições de saúde, ao ocorrerem simultaneamente e dentro de contextos sociais adversos, interagem de forma a agravar os seus efeitos combinados.

A sindemia global se refere especificamente à coexistência de:

  • Obesidade: crescimento alarmante da prevalência de sobrepeso e obesidade em todas as faixas etárias, inclusive em países de baixa renda.

  • Desnutrição: persistência da insegurança alimentar, subnutrição infantil e carências de micronutrientes.

  • Alterações climáticas: impactos diretos e indiretos do aquecimento global sobre a produção de alimentos, a saúde humana e os padrões de consumo.

Essas três crises compartilham causas estruturais comuns, como sistemas alimentares insustentáveis, desigualdades socioeconômicas e políticas públicas inadequadas.

2. O Elo Invisível: Sistemas Alimentares Globais

No centro da sindemia global estão os sistemas alimentares industrializados, que priorizam a produção em larga escala, o lucro e a eficiência, muitas vezes em detrimento da saúde e da sustentabilidade ambiental. Atendendo a uma demanda da bancada ruralista, o texto da PEC da devastação dispensa o licenciamento ambiental para uma série de atividades agropecuárias, mediante ao preenchimento de um formulário autodeclaratório sem qualquer verificação sobre impactos ambientais.

Sistemas alimentares globais:

  • Promovem o consumo de alimentos ultraprocessados, ricos em açúcar, sal e gorduras, contribuindo para a obesidade.

  • Reduzem a diversidade alimentar, limitando o acesso a alimentos frescos e nutritivos, agravando a desnutrição.

  • Geram emissões massivas de gases de efeito estufa, desmatamento e perda de biodiversidade, intensificando as mudanças climáticas.

A produção de carne bovina, por exemplo, é uma das maiores fontes de emissão de metano, um potente gás de efeito estufa, e está associada ao desmatamento de florestas tropicais para criação de pasto ou plantio de soja destinada à ração animal.

Outra Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Devastação é conhecida como PEC das Praias ou PEC 03/2022, que visa transferir a propriedade de terrenos de marinha da União para estados e municípios. Esta medida beneficia principalmente grandes empreendimentos privados, permitindo a privatização de áreas costeiras e dificultando o acesso público a essas áreas.

3. Impactos Recíprocos e Círculo Vicioso

A relação entre os três componentes da sindemia não é linear, mas interativa:

  • As mudanças climáticas afetam a segurança alimentar, com secas, inundações e eventos climáticos extremos comprometendo colheitas e elevando os preços dos alimentos.

  • A desnutrição aumenta a vulnerabilidade aos impactos do clima, especialmente em crianças e populações pobres.

  • A obesidade e doenças crônicas relacionadas (como diabetes e hipertensão) agravam os efeitos da exposição a extremos climáticos, como ondas de calor.

  • Políticas de combate à fome que se concentram apenas no aumento calórico, sem considerar qualidade nutricional e sustentabilidade, podem gerar obesidade ao mesmo tempo em que mantêm a desnutrição oculta.

Trata-se de um círculo vicioso alimentado por escolhas políticas, econômicas e culturais que tratam os problemas de forma isolada, em vez de sistêmica.

4. Soluções Sistêmicas para uma Crise Sistêmica

Diante da natureza interligada da sindemia global, as soluções precisam ser multissetoriais, coordenadas e centradas na justiça social.

Políticas públicas integradas:

  • Reformar subsídios agrícolas para favorecer alimentos nutritivos e sustentáveis.

  • Fortalecer sistemas alimentares locais e agroecológicos.

  • Implementar regulamentações mais rígidas sobre a publicidade e venda de ultraprocessados, especialmente para crianças.

Educação e mudança cultural:

  • Incentivar dietas sustentáveis, como a dieta planetária, que alia saúde humana e do planeta.

  • Promover educação alimentar e nutricional em escolas e comunidades.

Justiça climática e alimentar:

  • Assegurar o direito à alimentação adequada como princípio constitucional e orientador das políticas públicas.

  • Vetar medidas governamentais que aceleram o licenciamento de terras públicas estratégicas, como áreas da Amazônia e nossas praias.

  • Apoiar e respeitar as populações tradicionais, indígenas e agricultoras familiares como guardiãs da biodiversidade e dos saberes sustentáveis.

5. Um Chamado à Ação Global

A sindemia global exige mais do que intervenções médicas ou nutricionais. Requer uma mudança profunda de paradigma que una saúde pública, justiça climática e soberania alimentar. Precisamos parar de tratar obesidade, desnutrição e aquecimento global como crises distintas e começar a encará-las como partes interdependentes de um mesmo sistema em colapso. O enfrentamento dessa sindemia é, em última análise, uma questão de ética, equidade e sobrevivência planetária.

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/