D-2-hidroxiglutarato e os Oncometabólitos: Quando o Metabolismo gera o Câncer

A relação entre o metabolismo e o câncer tem ganhado grande atenção na ciência moderna. Um dos exemplos mais intrigantes dessa conexão é o papel dos oncometabólitos, especialmente o D-2-hidroxiglutarato (D-2HG), uma substância capaz de transformar a bioquímica celular e impulsionar o desenvolvimento de tumores. Mas como uma simples molécula pode ter tanto poder?

A origem da história: acidúria 2-hidroxiglutarática

Já em 1997, pesquisadores observaram que crianças com uma condição metabólica rara chamada acidúria 2-hidroxiglutarática apresentavam uma forte predisposição ao desenvolvimento de tumores cerebrais. Essa doença hereditária é causada por mutações nas enzimas que degradam o 2-hidroxiglutarato, levando ao acúmulo dessa substância no corpo.

Embora essa predisposição ao câncer tenha sido inicialmente considerada secundária diante dos graves sintomas neurológicos da doença — como convulsões, hipotonia e atraso no desenvolvimento —, tudo mudou com a publicação de um estudo revolucionário por Dang e colaboradores (2009).

Esse estudo demonstrou que mutações no gene IDH1 (isocitrato desidrogenase 1), comuns em certos cânceres cerebrais, levavam à produção anormal de D-2HG. Com isso, nasceu o conceito de oncometabólito, um metabólito cuja acumulação promove ativamente a oncogênese.

Como o D-2-hidroxiglutarato promove o câncer?

Em células saudáveis, a enzima IDH1 transforma isocitrato em α-cetoglutarato (α-KG) no ciclo de Krebs. Porém, mutantes IDH1 ou IDH2 adquirem uma função anormal: convertem α-KG em D-2HG, utilizando NADPH como cofator.

O acúmulo de D-2HG causa vários efeitos pró-tumorais:

  • 🧬 Inibição de dioxigenases α-KG-dependentes, incluindo TET2 e desmetilases de histonas → hipermetilação epigenética.

  • Silenciamento de genes supressores tumorais e ativação de oncogenes.

  • 🚫 Bloqueio da diferenciação celular, mantendo as células em estado progenitor, proliferativo.

  • 🔁 Ativação da via mTOR e estabilização do HIF-1α, promovendo crescimento tumoral e adaptação à hipóxia.

Em resumo, o D-2HG transforma o ambiente intracelular, promovendo proliferação, inibição de apoptose e escape da regulação epigenética — a receita perfeita para a formação de tumores.

Outros oncometabólitos além do D-2HG

Com os avanços da metabolômica, vários outros oncometabólitos foram descobertos nos últimos anos:

Essas moléculas agem de formas similares: inibem enzimas epigenéticas, alteram sinalização celular e promovem reprogramação metabólica.

Tratamento medicamentoso: Inibidores de IDH

A descoberta do papel oncogênico de D-2HG levou ao desenvolvimento de terapias-alvo revolucionárias:

  • Ivosidenibe (Tibsovo®)

    • Alvo: IDH1 mutado

    • Indicação: Leucemia mieloide aguda (LMA), colangiocarcinoma intra-hepático

    • Mecanismo: Bloqueia a produção de D-2HG, restaurando a diferenciação celular

    • Via: Oral

  • Enasidenibe (Idhifa®)

    • Alvo: IDH2 mutado

    • Indicação: LMA recidivada ou refratária

    • Via: Oral

Esses medicamentos atuam diretamente na enzima mutante, reduzindo D-2HG e seus efeitos epigenéticos. Ensaios clínicos também estão em andamento para uso em gliomas e outros tumores IDH-mutados.

E a nutrição, pode ajudar?

Embora não exista dieta capaz de reverter diretamente a mutação IDH ou bloquear a produção de D-2HG, a nutrição pode oferecer apoio complementar:

Estratégias possíveis:

  • Antioxidantes: Vitamina C, polifenóis, N-acetilcisteína

  • Suporte mitocondrial: Coenzima Q10, ácido alfa-lipoico

  • Estimulação de vias reguladoras: Dietas cetogênicas (em pesquisa para gliomas)

Vale lembrar que essas abordagens não substituem o tratamento médico, mas podem auxiliar na regulação do estresse oxidativo e metabolismo celular.

Conclusão

O D-2-hidroxiglutarato é muito mais que um simples subproduto metabólico: ele é uma molécula que redefine o papel do metabolismo na biologia do câncer. Sua descoberta como oncometabólito mudou nossa compreensão da oncogênese e abriu portas para terapias direcionadas inovadoras.

Da observação de uma rara doença metabólica infantil à criação de medicamentos que bloqueiam sua produção, a história do D-2HG exemplifica como genética, bioquímica e medicina translacional podem se unir na luta contra o câncer.

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/