Causas de enxaqueca em pessoas transgênero

As enxaquecas são muito mais do que uma simples dor de cabeça — tratam-se de uma condição neurológica crônica e debilitante que afeta cerca de 15% da população mundial. Caracterizam-se por crises de dor intensa, muitas vezes acompanhadas de náuseas, sensibilidade à luz (fotofobia) e ao som, e em alguns casos, por distúrbios visuais conhecidos como aura. Mas o que acontece no cérebro durante uma crise de enxaqueca? E por que essas dores afetam mais mulheres do que homens?

A ciência tem revelado que a enxaqueca é desencadeada por uma complexa cascata de eventos neurovasculares, iniciada pela depressão cortical propagada (CSD) — uma onda de despolarização que se espalha lentamente pela superfície do cérebro. Esse fenômeno altera a excitabilidade neuronal e leva à liberação de substâncias pró-inflamatórias, como o CGRP (peptídeo relacionado ao gene da calcitonina), que ampliam a sensibilidade à dor.

Mas esse processo fisiológico, embora comum, não se manifesta da mesma forma em todas as pessoas. Diferenças hormonais entre os sexos e identidades de gênero influenciam fortemente a prevalência, a gravidade e até a resposta ao tratamento das enxaquecas.

Mulheres, Homens e as Marcas Hormonais da Dor

Mulheres cisgêneras apresentam uma prevalência significativamente maior de enxaqueca — cerca de 18%, em comparação com 6% dos homens cisgêneros. Além disso, as mulheres têm mais probabilidade de desenvolver enxaqueca com aura, sugerindo uma sensibilidade biológica acentuada a fatores hormonais, especialmente as flutuações do estrogênio ao longo do ciclo menstrual.

Por outro lado, os homens cisgêneros são mais afetados por outro tipo de cefaleia primária: a cefaleia em salvas, com um padrão clínico e fisiológico distinto. Essa dicotomia na apresentação clínica aponta para o papel essencial dos hormônios sexuais na fisiopatologia das dores de cabeça.

Pessoas Transgênero: O Impacto da Terapia Hormonal

Indivíduos transgêneros — especialmente aqueles que realizam terapia hormonal de afirmação de gênero (HRT) — também vivenciam alterações no padrão das enxaquecas. Os hormônios sexuais, como o estradiol e a testosterona, são mensageiros lipídicos potentes que remodelam não apenas o corpo, mas também a estrutura e função do sistema neurovascular.

A introdução ou supressão de certos hormônios pode provocar mudanças na frequência e intensidade das crises. Por exemplo, o aumento nos níveis de estrogênio durante a HRT pode induzir uma maior sensibilização central em pessoas designadas homens ao nascer, reproduzindo padrões observados em mulheres cisgêneras. Isso torna imperativa a inclusão da população trans* nas pesquisas clínicas sobre enxaqueca, para garantir um cuidado médico mais personalizado e equitativo.

Estrogênio: Vilão ou Mediador?

O estrogênio é frequentemente apontado como o grande modulador das enxaquecas, mas sua ação é tudo menos simples. Este hormônio, produzido principalmente nos ovários, possui três formas — estradiol, estrona e estriol — cada uma predominando em diferentes fases da vida feminina.

Sua ação se dá por meio de dois receptores principais: ERα e ERβ, ambos presentes no cérebro e no sistema cardiovascular. Estudos recentes sugerem que o receptor beta (ERβ) pode estar envolvido nos mecanismos que desencadeiam a enxaqueca, especialmente pela sua atuação no sistema imunológico e na modulação da dor. A ligação entre o estrogênio e a enxaqueca é tão delicada que, em homens cisgêneros, a introdução de estradiol pode acelerar a depressão cortical e aumentar a sensibilização à dor, devido à ausência de uma contraposição hormonal adequada.

Hormônios sexuais femininos e enxaqueca (Martinez, Liktor-Busa, & Largent-Milnes, 2023)

Contribuições do Hormônio Progesterona para as Enxaquecas

Assim como o estrogênio, a progesterona desempenha um papel crucial na complexa regulação das enxaquecas. Este hormônio atua através de dois principais receptores, o receptor de progesterona alfa (PRα) e o receptor de progesterona beta (PRβ), que frequentemente coexistem com os receptores de estrogênio em várias regiões do sistema nervoso. Essa proximidade sugere uma interação íntima entre os dois hormônios, onde a atividade do estradiol pode modular a expressão e função dos receptores de progesterona, estabelecendo um delicado equilíbrio na regulação da excitabilidade cortical.

Ao contrário do estrogênio, que muitas vezes está associado à facilitação da enxaqueca, a progesterona parece exercer um efeito neuroprotetor. Ela ajuda a conter a hiperexcitabilidade cortical — um fator central na gênese da enxaqueca — atuando como um modulador da atividade neuronal. Este papel é reforçado por seu metabólito, a alopregnanolona, que potencia a atividade dos receptores GABA<sub>A</sub>, principais responsáveis pela inibição neural, especialmente nas células do núcleo caudalis do nervo trigêmeo, uma região crítica no processamento da dor cefálica.

Contudo, embora a progesterona tenha esse potencial protetor, a realidade clínica mostra que a quantidade endógena desse hormônio pode ser insuficiente para neutralizar completamente os efeitos sensibilizantes do estrogênio em pacientes com enxaqueca. Essa insuficiência pode explicar a persistência das crises, especialmente durante o período menstrual, quando ocorre uma queda abrupta nos níveis de estradiol. Nessa fase, a redução da sinalização do estrogênio, paradoxalmente, parece necessária para desencadear a sensibilização central, levando às típicas crises de enxaqueca menstrual.

Em outras palavras, a interação entre estrogênio e progesterona é complexa e multifacetada: enquanto o estradiol pode iniciar a cascata de sensibilização à dor, a progesterona tenta, sem sucesso total, conter essa resposta exacerbada. Esse desequilíbrio hormonal explica, em parte, por que tantas mulheres experimentam uma intensificação das enxaquecas em torno do ciclo menstrual.

O Papel da Prolactina na Dor da Enxaqueca

Embora menos conhecida no contexto das enxaquecas, a prolactina emerge como um importante modulador neuroendócrino dessa condição. Principalmente produzida pelas células lactotróficas da hipófise anterior, a prolactina também pode ser sintetizada em outros tecidos, como ovários, endotélio e tecido adiposo, desempenhando funções que vão além da regulação reprodutiva, incluindo influências sobre o sistema imunológico e o sistema nervoso.

Os níveis sanguíneos de prolactina são rigorosamente controlados por um mecanismo de feedback negativo mediado pela dopamina, que inibe sua produção. Contudo, níveis elevados de prolactina, similares ao que ocorre em algumas situações clínicas, como no prolactinoma (tumor hipofisário produtor de prolactina), têm sido associados à intensificação da dor da enxaqueca. Curiosamente, o uso do antagonista do receptor de dopamina D2, a cabergolina, mostrou eficácia significativa na redução da dor intensa nessas condições, sugerindo a prolactina como um promissor alvo terapêutico.

No sistema nervoso, a prolactina exerce suas ações através de dois tipos principais de receptores, PRL-L e PRL-S, encontrados em neurônios do gânglio trigeminal e nas fibras aferentes durais — regiões fundamentais para a transmissão da dor cefálica. A ativação do receptor PRL-L está associada ao aumento da sensibilização central e da inflamação neurogênica, enquanto a ativação do PRL-S estimula canais de potencial receptor transiente (TRP), conhecidos por sua capacidade de mediar respostas sensoriais a estímulos térmicos e químicos, promovendo a hiperexcitabilidade do sistema trigeminal.

Estudos em modelos animais revelam que a prolactina induz uma resposta inflamatória neurogênica semelhante à do estrogênio, liberando CGRP — um potente mediador da dor e vasodilatação. Essa sinergia entre prolactina e estrogênio é especialmente relevante no contexto feminino, onde o estrogênio pode aumentar a expressão dos receptores de prolactina, amplificando a sensibilização à dor. Em contraste, a testosterona tem um efeito oposto, suprimindo a expressão de prolactina e, consequentemente, reduzindo a sensibilização central, o que ajuda a explicar a menor prevalência de enxaqueca entre homens.

Além do papel direto na modulação da dor, a prolactina também está intimamente ligada ao estresse, um dos principais gatilhos das crises de enxaqueca. O estresse eleva os níveis de prolactina, interferindo na eficácia do sistema opioide endógeno, particularmente nos receptores kappa-opioides (KOR), responsáveis pelo alívio natural da dor. Isso cria um ciclo onde o aumento da prolactina induz uma sensibilização latente dos neurônios trigeminais, especialmente acentuada em mulheres. Em modelos experimentais, o tratamento com cabergolina preveniu a dor induzida pelo estresse em animais do sexo feminino, reforçando a importância da prolactina na mediação da dor relacionada à enxaqueca.

Terapia Hormonal de Afirmação de Gênero e Enxaqueca nas Populações Transgêneras

Apesar do crescente reconhecimento e aumento do número de pessoas trans*, as práticas de saúde ainda carecem de uma abordagem verdadeiramente inclusiva que reconheça as disparidades específicas enfrentadas por essa população. Quando se trata de condições crônicas como a enxaqueca, os estudos envolvendo pacientes trans* são ainda limitados, embora sejam essenciais para entender como a Terapia Hormonal de Afirmação de Gênero (HRT) impacta a saúde neurológica e a qualidade de vida dessas pessoas.

As evidências iniciais indicam que a HRT pode influenciar diretamente o risco e a experiência da enxaqueca em pacientes trans*. Um estudo conduzido na Holanda revelou que mulheres transgêneras em uso de estrogênio apresentavam uma taxa de diagnóstico de enxaqueca de aproximadamente 26%, valor semelhante ao observado em mulheres cisgêneras. Este dado sugere que a exposição ao estrogênio, especialmente em concentrações elevadas e sustentadas, pode aumentar a incidência e a gravidade da enxaqueca, particularmente aquela acompanhada de aura.

Além da frequência aumentada, mulheres trans relataram mudanças qualitativas na percepção da dor, com crises de enxaqueca mais frequentes, prolongadas e intensas, características associadas à enxaqueca crônica. Esses relatos indicam que a modulação hormonal via estrogênio pode amplificar a sensibilização neural e os mecanismos neurovasculares envolvidos na doença.

Por outro lado, homens trans em terapia com testosterona parecem experimentar um efeito oposto. A testosterona ajuda a estabilizar os níveis hormonais ao suprimir a função ovariana e interromper o ciclo menstrual, fatores que podem contribuir para a redução das crises de enxaqueca. Em um estudo, cerca de 50% dos homens trans com histórico de enxaqueca reportaram uma diminuição significativa na frequência das dores de cabeça após o início da terapia com testosterona, enquanto essa melhora foi menos comum entre aqueles com cefaleia tensional.

Esses dados reforçam o papel diferencial dos hormônios sexuais na modulação da dor de cabeça: o estrogênio tende a aumentar a suscetibilidade à enxaqueca, enquanto a testosterona pode exercer um efeito protetor ou mitigador. No entanto, a fisiologia envolvida é complexa, e fatores como dosagem hormonal, duração da terapia e sensibilidade individual ainda precisam ser investigados em profundidade para otimizar o manejo clínico.

Avançando para uma Saúde mais Inclusiva e Personalizada

Em suma, a Terapia Hormonal de Afirmação de Gênero representa um componente vital não apenas na afirmação da identidade de gênero, mas também na modulação das condições neurológicas, como a enxaqueca, em populações trans*. Reconhecer e compreender essas interações hormonais permite um diagnóstico mais acurado e um tratamento mais eficaz, respeitando as particularidades de cada indivíduo.

Além disso, esse conhecimento contribui para uma abordagem de saúde mais inclusiva e livre de preconceitos de gênero, beneficiando não apenas pessoas trans, mas também ampliando a compreensão dos mecanismos hormonais que afetam a saúde neurológica em todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero.

A ampliação da pesquisa nesta área é urgente e necessária, para que possamos desenvolver protocolos clínicos que integrem as complexas interações entre hormônios, gênero e dor, garantindo cuidado de excelência e empatia para todas as pessoas.

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/