As doenças cardiometabólicas têm se tornado um grande desafio à saúde global. Abrangem diabetes tipo 2 (DM2), obesidade, doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA), esteato-hepatite não alcoólica (NASH) e doença cardiovascular aterosclerótica (DCVA). Essas doenças não apenas impactam a qualidade de vida, mas também são intrinsecamente complexas em sua bioquímica, carecendo de tratamentos curativos claros.
Além disso, condições não metabólicas como doenças inflamatórias intestinais (DII) e câncer também enfrentam desafios semelhantes. Essa interseção biológica demonstra a necessidade urgente de desenvolver novos tratamentos para lidar com essas condições.
O Papel dos Ácidos Biliares (AB)
Os ácidos biliares, derivados do colesterol sintetizado no fígado, desempenham papéis cruciais na modulação do metabolismo e da inflamação. Ao se ligar a receptores como o Farnesoid X Receptor (FXR) e o receptor TGR5, os AB regulam:
Metabolismo de macronutrientes: lipídios, carboidratos e proteínas.
Equilíbrio inflamatório: pró-inflamatório e anti-inflamatório.
Alterações na fisiologia dos AB estão diretamente relacionadas à progressão de doenças cardiometabólicas, inflamatórias e até câncer. Isso os torna alvos promissores para intervenções terapêuticas.
Terapias Baseadas em Ácidos Biliares
Entre os tratamentos emergentes, o ácido obeticólico (OCA), um agonista de FXR, é o mais avançado. Embora aprovado para colangite biliar primária (PBC), sua aprovação para NASH foi rejeitada devido a efeitos colaterais em altas doses. Apesar disso, os especialistas acreditam no potencial de terapias baseadas em AB, especialmente com avanços que reduzam toxicidades.
Bioquímica dos Ácidos Biliares
A síntese de AB no fígado segue duas vias principais:
Via Clássica: Responsável por cerca de 90% dos AB humanos, envolve a hidroxilação e oxidação do colesterol para formar os ácidos cólico (CA) e quenodesoxicólico (CDCA).
Via Alternativa: Responde por 10% dos BAs humanos, utiliza enzimas adaptativas para responder a condições específicas, como dietas ricas em gordura.
Ambas as vias convergem na etapa de conjugação, onde os AB primários são modificados para maior solubilidade. Subsequentemente, a microbiota intestinal pode transformá-los em AB secundários, que possuem propriedades distintas.
Os ácidos biliares (AB) passam por um processo de maturação que ocorre principalmente no intestino, envolvendo a circulação entero-hepática e interações com o microbioma intestinal. Esse processo promove a modificação e diversificação dos AB primários em secundários, fundamentais para a regulação metabólica e inflamatória.
O Papel do Microbioma na Modificação de AB
No intestino, o microbioma desempenha um papel crucial na transformação dos AB primários, originalmente sintetizados pelo fígado. As principais etapas desse processo incluem:
Desconjugação: Realizada pela enzima Bile Salt Hydrolase (BSH), que remove os grupos de glicina ou taurina dos AB primários.
7α/β-Desidroxilação: Executada por proteínas do operon bai, transformando os AB primários em secundários.
Epimerização: Catalisada por enzimas da família Hydroxysteroid Dehydrogenases (HSDHs), ajustando a estrutura química dos AB.
Essas modificações produzem AB secundários com propriedades distintas e importantes para a homeostase metabólica.
Principais AB Secundários
Nos seres humanos, os AB secundários mais comuns são:
Ácido Desoxicólico (DCA): Resultante da transformação do ácido cólico (CA).
Ácido Litocólico (LCA): Derivado do ácido quenodesoxicólico (CDCA).
Ácido Ursodesoxicólico (UDCA): Um AB com propriedades anti-inflamatórias e hepatoprotetoras.
Em menor quantidade, encontramos o Ácido Hiodesoxicólico (HDCA).
Reconjugação e Outras Transformações
Após serem reabsorvidos pelo sistema entero-hepático, os AB secundários podem ser reconjugados no fígado. Em humanos, isso mantém o equilíbrio funcional dos AB na circulação.
Nos roedores, diferenças metabólicas incluem a capacidade de re-hidroxilação de AB secundários através do Citocromo P450 (CYP2A12), algo ausente nos humanos.
Importância dos AB Secundários
Os AB secundários não apenas auxiliam na digestão de gorduras, mas também desempenham papéis regulatórios importantes, incluindo:
Modulação da sinalização inflamatória.
Interação com receptores como FXR e TGR5.
Influência no microbioma intestinal e saúde metabólica.
Os ácidos biliares são mais do que simples agentes digestivos; eles passam por transformações sofisticadas no intestino, mediadas pelo microbioma, que afetam suas propriedades biológicas e farmacológicas. Abaixo, exploramos os principais processos que envolvem a desconjugação, conjugação microbiana, 7α/β-desidroxilação e epimerização dos AB.
1. Desconjugação de Ácidos Biliares: O Papel da Enzima BSH
Ação da BSH:
A enzima Bile Salt Hydrolase (BSH) remove glicina ou taurina dos BAs primários, servindo como etapa inicial para sua transformação posterior. Essa desconjugação aumenta a natureza antimicrobiana dos AB, restringindo o crescimento de patógenos como Clostridium difficile.Distribuição da BSH:
BSH é encontrada em diversas bactérias, incluindo Bifidobacterium, Lactobacillus e Bacteroides, indicando sua ampla relevância no microbioma. A capacidade de realizar essa reação é sugerida como potencialmente transferível entre espécies bacterianas.
2. Conjugação Microbiana de Ácidos Biliares (CMAB)
Conjugação Alternativa:
Embora tradicionalmente associada ao fígado, a conjugação também ocorre no intestino, onde BSH catalisa a ligação de aminoácidos alternativos aos AB. Isso resulta nos chamados ácidos biliares conjugados microbianamente (CMAB).Impacto Físico-Químico:
Os CMAB possuem hidrofobicidade variável e propriedades antimicrobianas diferenciadas. AB mais hidrofóbicos são mais potentes contra bactérias, criando um ciclo de regulação no microbioma. Além disso, os CMAB modulam a interação dos AB com receptores nucleares, como FXR, alterando suas propriedades farmacológicas.
3. 7α/β-Desidroxilação: Geração de AB Secundários
Mecanismo Enzimático:
O processo de 7α/β-desidroxilação é mediado pelo operon bai, encontrado em bactérias como Clostridium scindens. Essa via converte ácidos biliares primários como CA e CDCA em secundários como DCA e LCA.Função do Operon bai:
Embora a reação chave seja conduzida pelas enzimas baiE e baiN, o restante do operon fornece suporte enzimático essencial para otimizar o processo. Ele é crucial para ajustar a taxa de transformação e conservar energia bacteriana.
4. Epimerização: Diversificando a Estrutura dos AB
O Processo:
A epimerização ocorre em duas etapas: oxidação do álcool em uma cetona e redução na face oposta. Diferentes bactérias realizam a oxidação nas posições 3, 7 ou 12, gerando novos epímeros como UDCA (de CDCA) ou isoCA (de CA).Implicações Funcionais:
Os epímeros têm propriedades físico-químicas e farmacológicas distintas, ampliando a diversidade funcional dos AB no organismo.
5. Hidrofobicidade e Estrutura dos AB
A estrutura dos AB influencia diretamente sua hidrofobicidade e função:
Estrutura e Propriedades:
A espinha dorsal esteroidal dos AB combina faces hidrofílicas e hidrofóbicas. A adição de grupos hidroxila na face β pode alterar drasticamente suas propriedades, afetando sua função antimicrobiana e interação com receptores.Hidrofilicidade Relativa:
Entre os BAs livres, a hidrofilicidade segue a ordem: ωMCA > UDCA > HDCA > CA > CDCA > DCA > LCA. Quando conjugados, os AB com taurina são mais hidrofílicos que os com glicina.
O pool de ácidos biliares inclui todos os AB dentro da circulação entero-hepática, excluindo os encontrados na circulação sistêmica. Ele desempenha papéis cruciais na digestão, absorção de lipídios e regulação metabólica. Vamos explorar como diferentes AB trabalham em conjunto, suas composições específicas por tecido e as implicações para a saúde humana.
Distribuição dos Ácidos Biliares nos Tecidos
Fígado: A maior parte dos AB encontrados aqui são altamente conjugados.
Árvore Biliar e Intestino Delgado: AB são moderadamente conjugados.
Intestino Grosso e Fezes: Grande proporção de AB livres.
Funções Digestivas do Pool de AB
Os AB atuam como surfactantes essenciais para:
Solubilizar lipídios e vitaminas lipossolúveis (A, D, E, K).
Formação de micelas que otimizam a absorção no intestino delgado.
A conjugação com glicina ou taurina reduz o pKa dos AB, otimizando a solubilização em pH fisiológico. Desequilíbrios na composição do pool podem:
Excesso de hidrofobicidade: Causar hepatotoxicidade e colestase.
Excesso de hidrofobicidade: Reduzir a eficácia de micelas.
Perfis Farmacológicos e Interação com Receptores
Os AB ativam dois receptores nucleares principais:
FXR: Regula metabolismo de lipídios e glicose.
Agonistas potentes: CDCA > DCA > LCA > CA.
MCAs e UDCA atuam como antagonistas.
TGR5: Relacionado à termogênese e secreção intestinal.
Agonistas potentes: LCA > DCA > CDCA > CA.
Os BAs secundários, como DCA e LCA, têm maior eficácia sobre o TGR5, enquanto o CDCA é o agonista mais potente para o FXR. Essa relação destaca a importância do equilíbrio entre os fluxos metabólicos de síntese de AB primários e sua maturação em BAs secundários.
Regulação do Pool de AB: Circulação Entero-Hepática
Os processos que controlam o pool de AB incluem:
Síntese Hepática: Os hepatócitos secretam AB conjugados para os canalículos biliares.
Liberação Intestinal: Após a alimentação, a colecistocinina (CCK) estimula a liberação de bile no duodeno.
Reabsorção Ileal: Cerca de 95% dos AB são reabsorvidos no íleo terminal via transportadores específicos, como o ASBT.
Excreção Fecal: Os 5% restantes são excretados, sendo a principal via de eliminação do colesterol.
Os ácidos biliares desempenham um papel essencial no metabolismo lipídico, na sinalização celular e na regulação metabólica. Entenda como funcionam os processos de transporte, sinalização e controle molecular dos AB em um contexto fisiológico e suas implicações na saúde.
1. Transporte e Circulação dos Ácidos Biliares
Após a reabsorção dos AB no intestino terminal (íleo), um ciclo rigorosamente controlado os transporta de volta ao fígado:
Reabsorção no Íleo:
A I-BABP (Proteína de Ligação ao AB Ileal) transporta os AB da membrana apical para a basolateral dos enterócitos.
O transportador OST (α/β) e a proteína MRP3 permitem a entrada dos AB na circulação portal hepática.
Parte dos AB pode ser reciclada de volta ao lúmen intestinal via MRP2.
Recirculação ao Fígado:
Os hepatócitos captam os AB conjugados por NTCP e os livres por OATP1.
Em caso de sobrecarga hepática, os AB podem ser efluídos para a circulação sistêmica por MRP3, MRP4 ou OST (α/β).
Impactos de Alterações no Transporte:
Modificações nos transportadores, como a supressão do ASBT no íleo ou do BSEP/MRP2 no fígado, podem alterar a reciclagem e aumentar a excreção fecal de BAs.
2. Sinalização Celular dos Ácidos Biliares
Os AB funcionam como moléculas de sinalização através de seus receptores nucleares e de membrana, influenciando processos metabólicos.
Receptor Nuclear FXR: Regulador Central da Homeostase dos BAs
Função Principal: O FXR (Farnesoid X Receptor) é um fator de transcrição que regula a produção de AB e sua reciclagem, além de atuar em processos metabólicos como:
Redução da síntese de AB.
Controle da absorção de colesterol.
Modulação de respostas inflamatórias.
Biologia Molecular do FXR:
FXR dimeriza com RXRα e se liga a elementos reguladores (FXREs) para ativar genes como o SHP (Small Heterodimer Partner), um correpressor chave.
A atividade de FXR pode ser modulada por alterações epigenéticas, como a metilação de CpG, ou por modificações pós-translacionais, como acetilação e SUMOilação.
O Eixo FXR-SHP:
O agonismo de FXR induz a expressão de SHP, que inibe fatores transcricionais como LRH-1 e HNF4α. Este mecanismo é crucial para:
Suprimir a síntese excessiva de AB.
Promover a compactação da cromatina e modular epigeneticamente genes-alvo.
Eixo FGF15/19-FGFR4/βK-FXR:
No intestino, a ativação de FXR estimula a liberação de FGF15/19 (em roedores e humanos, respectivamente), que sinalizam ao fígado via o receptor FGFR4/βK para regular a síntese de AB e reduzir o apetite no hipotálamo.
3. Impactos Metabólicos e Farmacológicos dos Ácidos Biliares
Os diferentes perfis de AB influenciam sua eficácia como agonistas dos receptores FXR e TGR5:
FXR:
Potência dos BAs como agonistas de FXR: CDCA > DCA > LCA > CA >> UDCA/MCAs.
A composição do pool de AB pode alterar a proporção de agonismo de FXR e TGR5, modulando a homeostase metabólica.
TGR5:
Os agonistas mais potentes são os AB secundários, como DCA e LCA, destacando a importância da conversão intestinal para regular a sinalização.
4. Alterações Microbianas e Saúde dos AB
A composição microbiana intestinal é essencial para a maturação dos AB, afetando suas vias biossintéticas e propriedades farmacológicas. Disfunções podem levar a:
Alterações na absorção de lipídios.
Aumento de AB tóxicos (hidrofóbicos).
Redução da eficiência de sinalização.
Conclusão
A regulação dos ácidos biliares é um sistema integrado que conecta o intestino, fígado e microbiota, influenciando desde a digestão de gorduras até a sinalização metabólica. Alterações nesse equilíbrio têm impactos profundos na saúde, destacando a importância de entender os mecanismos fisiológicos e epigenéticos que governam a circulação e sinalização dos AB.