Intestino e transtorno bipolar

Os transtornos bipolares (TB) são doenças psiquiátricas complexas e graves, caracterizadas por flutuações de humor cíclicas, que incluem fases de mania (ou hipomania) e depressão. O transtorno bipolar tipo 1 envolve episódios de mania e depressão, enquanto o tipo 2 é marcado por episódios depressivos e hipomaníacos, sem mania. Existem também episódios com “características mistas”, quando sintomas de mania ou hipomania ocorrem durante a depressão e vice-versa.

Flutuações de humor característias no transtorno bipolar tipo 1 e tipo 2 (Ortega et al., 2023)

O transtorno bipolar é uma das principais causas de incapacidade no mundo e afeta mais mulheres, com elas apresentando ciclos mais rápidos e manifestações misturadas de mania. Além disso, os pacientes com TB enfrentam um risco elevado de comorbidades psiquiátricas, como transtornos de ansiedade e abuso de substâncias, além de um aumento significativo do risco de suicídio, que atinge cerca de 23-26% dos pacientes.

Etiopatogênese do Transtorno Bipolar

A causa do TB ainda não é totalmente compreendida, mas acredita-se que seja uma combinação de fatores genéticos, ambientais e psicossociais. A hereditariedade parece seguir um padrão complexo, com múltiplos loci de susceptibilidade. Além disso, fatores ambientais como infecções virais podem influenciar o curso da doença. A epigenética desempenha um papel importante, com modificações no DNA e histonas sendo consideradas chave no desenvolvimento do transtorno.

Em nível molecular, alterações no sinal de cálcio e na regulação de neurotransmissores, como serotonina, dopamina e norepinefrina, estão fortemente associadas ao TB. Essas disfunções são refletidas em mudanças estruturais e funcionais no cérebro, que afetam o processamento de emoções e a regulação do comportamento. Estudos também revelam que pacientes com TB apresentam redução da neuroplasticidade e neurogênese.

Além disso, a inflamação crônica de baixo grau, disfunções mitocondriais e alterações no ritmo circadiano também são características observadas em pessoas com TB, sugerindo um envelhecimento precoce. A disfunção do eixo microbiota-intestino-cérebro (MGB) também tem sido estudada como um fator importante na patogênese do transtorno. A microbiota intestinal, composta por trilhões de microrganismos, interage diretamente com o sistema nervoso e o sistema imunológico, influenciando processos metabólicos e comportamentais.

A desregulação da microbiota intestinal pode estar ligada à inflamação de baixo grau e a uma variedade de condições patológicas, incluindo distúrbios psiquiátricos como o TB. O eixo MGB é uma via bidirecional, onde sinais do intestino influenciam o cérebro e vice-versa, com implicações significativas para o entendimento e tratamento do transtorno bipolar. Estudos sobre como a microbiota intestinal afeta o curso do TB e o impacto da farmacoterapia na microbiota estão em andamento, abrindo novas oportunidades para abordagens terapêuticas promissoras.

Redução da diversidade microbiana intestinal e mudanças na abundância são observados no TB (Ortega et al., 2023)

Translocação Bacteriana e Sua Relação com o Transtorno Bipolar (TB)

A microbiota intestinal tem um papel crucial na regulação da permeabilidade intestinal, afetando a função da barreira mucosa. Quando ocorre disbiose (desequilíbrio microbiano), essa função pode ser comprometida, levando à translocação de bactérias e produtos bacterianos para a corrente sanguínea, o que contribui para estados crônicos pró-inflamatórios. Esses desequilíbrios podem impactar tanto o sistema nervoso central (SNC) quanto a resposta imunológica, resultando em doenças sistêmicas. Há também uma conexão bidirecional entre o cérebro e o intestino, onde lesões no SNC podem desencadear danos intestinais.

Evidências crescentes sugerem que a microbiota intestinal de pacientes com transtorno bipolar (TB) pode sofrer alterações, com sinais de translocação bacteriana, como o aumento de anticorpos anti-Saccharomyces cerevisiae. Embora esses anticorpos não se correlacionem diretamente com a gravidade dos sintomas ou com o tratamento farmacológico, sua presença é relevante. Outros indicadores, como o CD14 solúvel e anticorpos contra a gliadina, também estão elevados em pacientes com TB, especialmente durante a fase maníaca, e estão associados a maiores taxas de rehospitalização.

Inflamação Intestinal e Sistêmica em TB

A inflamação intestinal é um dos principais fatores responsáveis pela deterioração da barreira intestinal, favorecendo a translocação bacteriana e a ativação do sistema imunológico. Citocinas pró-inflamatórias, como TNF-α, IL-1β e IL-18, são potentes mediadoras da inflamação intestinal, e sua elevação está associada ao aumento da permeabilidade intestinal, o que exacerba a inflamação sistêmica. Pacientes com TB apresentam níveis alterados dessas citocinas, e algumas, como IL-6, foram sugeridas como marcadores de episódios maníacos.

Estudos revelam que a inflamação sistêmica em pacientes com TB pode ser contínua, com alterações significativas nos níveis de citocinas e proteínas inflamatórias, como a proteína C-reativa (CRP). Além disso, pacientes com TB apresentam maior risco de comorbidades inflamatórias. Mesmo em fases de estabilização (eutimia), essas alterações imunes ainda são observadas, sugerindo que a inflamação é uma característica constante do transtorno.

Neuroinflamação e o Eixo Hipotálamo-Pituitária-Adrenal (HPA)

Fatores envolvidos na neuroinflamação no TB (Ortega et al., 2023)

A neuroinflamação, caracterizada pela ativação de microglia e astrócitos no sistema nervoso central (SNC), está fortemente associada ao TB. A ativação dessas células leva à liberação de citocinas e radicais livres, exacerbando a neuroinflamação e comprometendo a plasticidade neural. O aumento da inflamação no cérebro está relacionado à disfunção da barreira hematoencefálica (BHE), que se torna mais permeável, facilitando a entrada de toxinas e substâncias inflamatórias, o que impacta a função cerebral.

A hiperatividade do eixo HPA, responsável pela liberação de cortisol, também é observada em pacientes com TB. O excesso de cortisol está associado ao desenvolvimento de sintomas depressivos e ao risco aumentado de recaídas e déficits cognitivos. Além disso, estudos indicam que a inflamação crônica e os danos mitocondriais podem prejudicar a função cerebral, exacerbando a neuroinflamação e favorecendo o desenvolvimento do TB.

Impacto do Estresse e Distúrbios do Sono

O estresse é um gatilho importante para a ativação da neuroinflamação em pacientes com TB. A resposta imunológica ao estresse está associada ao aumento da produção de citocinas e à disfunção do eixo HPA. Além disso, a falta de sono adequado, comum em pacientes com TB, pode agravar a ativação imunológica e a neuroinflamação. A desregulação circadiana, que afeta os mecanismos antioxidantes celulares, pode contribuir para o aumento do estresse oxidativo e da inflamação, exacerbando os sintomas do transtorno.

Ações Neuromodulatórias da Microbiota Intestinal no Transtorno Bipolar (BD)

A microbiota intestinal desempenha um papel significativo na neuromodulação do Transtorno Bipolar (BD) por meio de mecanismos diretos e indiretos. Essas atividades envolvem a síntese e degradação de neurotransmissores, bem como a produção de metabólitos microbianos que influenciam várias funções fisiológicas.

1. Ações Diretas da Microbiota Intestinal na Neurotransmissão

A desregulação de neurotransmissores, particularmente de GABA, glutamato, serotonina, dopamina, norepinefrina e acetilcolina, é uma característica marcante do BD. A microbiota intestinal age como moduladora desses neurotransmissores, seja sintetizando-os ou afetando seu metabolismo. Por exemplo:

  • Serotonina: Embora algumas bactérias intestinais possam produzir serotonina, o principal mecanismo envolve a estimulação das células enteroendócrinas (EECs), que contribuem para a síntese de serotonina. Esse processo é principalmente impulsionado por bactérias formadoras de esporos.

  • Glutamato e GABA: A microbiota intestinal, incluindo espécies como Coryneform e bactérias ácido-lácticas (LAB), produz glutamato, que pode influenciar as EECs e o nervo vago. O GABA é sintetizado a partir do glutamato pela enzima glutamato descarboxilase, e cepas específicas de Lactobacillus são importantes produtoras de GABA.

  • Dopamina e Norepinefrina: Uma série de bactérias contribui para a produção dessas monoaminas, embora mais pesquisas sejam necessárias para entender completamente o mecanismo.

  • Histamina: Um grande número de bactérias são produtoras de histamina, que pode atuar como neurotransmissor. Alterações nos níveis de histamina no BD são hipotetizadas como associadas a mudanças nos estados de humor e nos ciclos de sono-vigília.

2. Ácidos Graxos de Cadeia Curta (SCFAs)

Os SCFAs, principalmente butirato, propionato e acetato, são produzidos pelas bactérias intestinais durante a fermentação de fibras alimentares e outros substratos. Esses ácidos graxos são cruciais para a manutenção da saúde intestinal e têm vários efeitos sistêmicos, incluindo:

  • Regulação Metabólica e do Sistema Imune: Os SCFAs atuam como reguladores epigenéticos e possuem propriedades anti-inflamatórias, influenciando as respostas imunes e a permeabilidade intestinal. Sua redução no BD pode contribuir para o aumento da inflamação intestinal.

  • Neuroinflamação e Função Cerebral: Os SCFAs podem atravessar a barreira hematoencefálica (BHE) e exercer efeitos neuroprotetores, melhorando a função neuronal e reduzindo a neuroinflamação. Níveis mais baixos de bactérias produtoras de butirato no BD estão associados a disfunções no eixo microbiota-intestino-cérebro (MGB).

3. Metabolismo do Triptofano-Kynurenina

O triptofano é um aminoácido essencial com múltiplos destinos metabólicos e crucial na resposta ao perigo celular, sendo a microbiota intestinal um modulador de suas vias metabólicas:

  • Serotonina e Tryptamina: O metabolismo do triptofano no intestino leva à produção de serotonina, que impacta a função cerebral e pode modular as vias serotoninérgicas centrais.

  • Via Kynurenina: O metabolismo do triptofano pela via kynurenina pode produzir compostos neuroativos como o ácido quinurênico (KYNA), com propriedades neuroprotetoras, ou o ácido quinolínico (QA), neurotóxico. Desbalanceamentos nessa via, incluindo níveis reduzidos de KYNA e aumento de QA, são observados no BD.

  • Influência Microbiana na Kynurenina: A disbiose em pacientes com BD está associada a um desequilíbrio na via kynurenina, levando a uma neuroinflamação aumentada, que é exacerbada durante as fases maníacas e depressivas.

A microbiota intestinal desempenha um papel crucial na modulação da neurotransmissão e na influência da função cerebral no BD por meio da produção de metabólitos-chave, como neurotransmissores, SCFAs e derivados do triptofano. Distúrbios na microbiota intestinal podem contribuir para a neuroinflamação, mudanças nos níveis de neurotransmissores e alteração na neuroplasticidade, influenciando assim a manifestação clínica do BD. Esta pesquisa destaca a importância terapêutica potencial de direcionar a microbiota intestinal no tratamento e manejo do BD.

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/