Mulheres com endometriose não devem usar creatina

A endometriose (EM) é uma doença inflamatória crônica em que tecido semelhante ao endométrio cresce fora da cavidade uterina, com uma patogênese ainda não totalmente esclarecida.

Macrófagos peritoneais (na cavidade abdominal/peritoneal) têm papel importante no microambiente imunológico da EM, podendo favorecer ou inibir a progressão das lesões dependendo de sua “polarização” (por exemplo, fenótipo M1 pró-inflamatório ou M2 anti-inflamatório/reparador).

Um pesquisa publicada na revista Reproduction investigou o papel do suplemento creatina na modulação desses macrófagos e seu impacto sobre a progressão da endometriose (Chen et al., 2025)

Principais achados

  1. Níveis elevados de creatina em macrófagos peritoneais em pacientes com EM: Os autores observaram que macrófagos peritoneais de mulheres com endometriose apresentam maior enriquecimento e síntese de creatina comparados a mulheres sem a doença. Isso sugere que a creatina pode estar envolvida no ambiente microambiental peritoneal da EM.

  2. Efeito da creatina sobre a polarização de macrófagos (indução de fenótipo M2): Através de experimentos de RNA-seq e ensaios in vitro, foi demonstrado que a creatina “reprograma” os macrófagos peritoneais para um fenótipo M2. Esses macrófagos “M2 induzidos pela creatina” mostram aumento de expressão de metaloproteinases da matriz (que degradam matriz extracelular) e citocinas anti-inflamatórias, fatores que favorecem angiogênese, fibrogênese, adesão celular e reparo tecidual. Ou seja: a creatina altera o comportamento dos macrófagos de modo a favorecer um ambiente “promotor de crescimento” das lesões ectópicas.

  3. Consequências para células do tecido endometrial e para angiogênese/fibrogênese: Quando as células estromais endometriais são co-cultivadas com macrófagos tratados com creatina, essas células demonstram maior migração e maior tendência à fibrogênese. Também foi observada promoção da angiogênese (formação de vasos) em células endoteliais (HUVECs) em presença de macrófagos tratados com creatina. Isso sugere que a reprogramação dos macrófagos por creatina contribui para criar um ambiente favorável ao crescimento, vascularização e “estruturação” das lesões ectópicas.

Implicações da creatina para o desenvolvimento da EM

Com base nos experimentos acima Chen e colaboradores (2025) propõem que a creatina, ao polarizar macrófagos para o fenótipo M2, favorece:

  • a iniciação das lesões ectópicas;

  • a formação de fibrose nas lesões (fibrogênese);

  • a vascularização/angiogênese das lesões ectópicas.

Ou seja: a creatina atua como modulador imunológico que promove a progressão da endometriose.

Limitações do estudo

Embora os resultados do estudo sejam interessantíssimo, os dados são de modelos in vitroou co-culturas, com extrapolação para o ambiente vivo. A complexidade da polarização macrófaga in vivo é alta — há muitos sinais simultâneos no microambiente peritoneal que podem modular essa resposta. Seria importante validar em modelos animais de endometriose (in vivo) e também em amostras humanas adicionais. Assim, outros pontos também devem ser investigados e o uso da metabolômica é bastante útil.

Metabolômica na endometriose

Metabolômica é a ciência que identifica e quantifica todos os metabólitos de um sistema biológico, permitindo compreender as vias metabólicas ativas e suas alterações diante de estímulos fisiológicos, patológicos, ambientais ou genéticos.

Os exames metabolômicos são testes laboratoriais que utilizam técnicas de alta precisão para detectar e medir centenas ou milhares de metabólitos simultaneamente. Eles fornecem uma “assinatura metabólica” do organismo.

O artigo "Tryptophan and kynurenine stimulate human decidualization via activating Aryl hydrocarbon receptor" de Wang et al. (2020) explora como o triptofano e sua via metabólica, a quinurenina, influenciam a decidualização humana por meio da ativação do receptor aril-hidrocarboneto (AHR).

A decidualização é o processo pelo qual as células estromais do endométrio (o tecido que reveste o útero) sofrem uma transformação estrutural e funcional para se preparar para a possível implantação de um embrião. Esse processo é fundamental para o início e a manutenção da gravidez.

O triptofano é metabolizado pela enzima IDO1 em quinurenina, que ativa o AHR. A sinalização do receptor aril carboneto (AHR) aumenta a expressão de CYP1A1 e CYP1B1, que metabolizam o estradiol em catecolestrogênios (2-hidroxiestradiol e 4-hidroxiestradiol), os quais, por sua vez, induzem a expressão de IGFBP1, promovendo a decidualização.

  • Receptividade Uterina: A via AHR-kynurenina pode regular a receptividade uterina, essencial para a implantação embrionária.

  • Distúrbios Reprodutivos: Alterações nessa via podem estar associadas a condições como endometriose e infertilidade.

  • Terapias Potenciais: Modular a via AHR-kynurenina pode oferecer novas abordagens terapêuticas para distúrbios reprodutivos.

Este estudo destaca a importância da via do triptofano e do AHR na decidualização humana, oferecendo insights para futuras pesquisas e terapias no campo da reprodução.

Implicações para o endométrio

  • Tolerância imunológica: A kynurenina via AHR pode ajudar a criar um microambiente imunossuprimido local, importante para a implantação embrionária e manutenção da gravidez.

  • Controle da inflamação: Pode reduzir a ativação de Th17 e produção de IL-17, modulando inflamação endometrial crônica.

  • Doenças ginecológicas: Alterações nessa via podem estar associadas a condições como endometriose, infertilidade inflamatória ou disfunções do ciclo menstrual.

  • Interação com CAM: Substâncias que aumentam a kynurenina ou modulam AHR podem ter potencial terapêutico na regulação imunológica do endométrio.

Suplementação

  • Creatina (monoidrato): evitar suplementação de creatina em pacientes com história de endometriose ou doença ativa. Se paciente já usa creatina (ex.: atletas), discutir riscos/benefícios e considerar interromper até avaliação.

  • Triptofano / 5-HTP: suplementação pode aumentar disponibilidade de substrato para via Kyn; evitar.

  • Melatonina, vitamina D, ácidos graxos ômega-3: alguns estudos sugerem efeitos anti-inflamatórios e benefícios na dor pélvica/endometriose — são opções com perfil de segurança melhor documentado; contudo, interações com a via Kyn/AHR são complexas e precisar ser interpretadas caso a caso. Não há evidência direta de que melatonina ou ômega-3 modulam Kyn de forma clinicamente relevante na EM, mas podem ser consideradas como coadjuvantes sintomáticos sob supervisão médica.

  • Observar gatilhos que aumentam inflamação e ativam a via Kyn:

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/

Marcadores metabolômicos na depressão

A metabolômica é o estudo de metabólitos — pequenas moléculas presentes no sangue, urina, saliva ou tecido — que refletem o estado metabólico do organismo em tempo real. Aplicada à depressão, ela vem oferecendo novas perspectivas para diagnóstico e tratamento.

Por que é relevante na depressão?

A depressão não é apenas química; envolve alterações metabólicas e inflamatórias no cérebro. A metabolômica permite identificar biomarcadores específicos que diferenciam tipos de depressão ou preveem resposta a tratamentos. Pode ajudar a personalizar intervenções, como medicações, dieta e estilo de vida, de forma mais precisa.

Exemplos de achados:

  • Ácido Esteárico, Fitoesfingosina, Glicina, Glutamina e Fosfolipídios: São identificados como importantes biomarcadores metabólicos no plasma de pacientes deprimidos. Estão envolvidos em vias como as vias de sinalização PI3K-Akt e mTOR, intimamente relacionadas aos mecanismos patológicos da depressão [1].

  • Liso-PE 22:6 e Liso-PE 20:4: Esses metabólitos estão associados ao desenvolvimento de depressão leve a moderada. Eles demonstram potencial para distinguir pacientes com depressão de controles saudáveis e estão envolvidos nas vias metabólicas de aminoácidos e lipídios [2].

  • Ácido Glutâmico e Fosfatidilcolina (32:0): Níveis elevados desses metabólitos são consistentemente observados em pacientes depressivos. Outros metabólitos, como triptofano, ácido quinurênico, acetilcarnitina, serotonina, creatinina, inosina, fenilalanina e valina, apresentam níveis mais baixos em amostras de sangue de pacientes com depressão [3].

  • GABA, Dopamina, Tiramina, Quinurenina: Um painel de neurometabólitos composto por esses biomarcadores de metabólitos plasmáticos pode representar marcadores clinicamente úteis para transtorno depressivo maior (TDM) [4].

  • Creatinina, Succinato de Arginina, N-acetilisoureia, 3-amino-2-piperidona, Carboxietil-GABA: Esses metabólitos do líquido cefalorraquidiano apresentam hereditariedade genética significativa e estão potencialmente relacionados à depressão [5].

  • Marcadores de estresse oxidativo, relacionados à neurodegeneração e fadiga.

    • Malondialdeído (MDA): Produto final da peroxidação lipídica, frequentemente elevado em indivíduos com depressão, indicando dano celular oxidativo [6].

    • Glutationa (GSH): Antioxidante intracelular essencial, com níveis reduzidos observados em pacientes deprimidos, sugerindo comprometimento das defesas antioxidantes [7].

    • 8-Oxo-2'-desoxiguanosina (8-OHdG): Indicador de dano ao DNA, com aumento significativo em plasma e urina de indivíduos com TDM, refletindo estresse oxidativo intracelular.

    • Superóxido dismutase (SOD): Enzima antioxidante, com níveis plasmáticos correlacionados positivamente com a amplitude de flutuação de baixa frequência (ALFF) em pacientes com TDM, sugerindo relação com a atividade cerebral funcional [8].

Esses achados destacam vários marcadores metabolômicos associados à depressão, fornecendo insights sobre potenciais alvos diagnósticos e terapêuticos. O objetivo da avaliação metabolômica é contribuir para um diagnóstico precoce e mais objetivo, potencializar as prescrições para que sejam mais eficazes, considerando o perfil metabólico do paciente, contribuir para monitorização e individualização do tratamento.

Referências

1. Gao Y, et al. A Novel Network Pharmacology Strategy to Decode Metabolic Biomarkers and Targets Interactions for Depression. Front Psychiatry. 2020. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/32760300/

2. Yu J, et al. Plasma Lyso-PE 22:6 and Lyso-PE 20:4 are associated with development of mild to moderate depression revealed by metabolomics: a pilot study. BMC Psychiatry. 2025. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/40597055/

3. Pu J, et al. Characterizing metabolomic and proteomic changes in depression: a systematic analysis. Mol Psychiatry. 2025. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/39955468/

4. Nikolac Perkovic M, et al. A Load to Find Clinically Useful Biomarkers for Depression. Adv Exp Med Biol. 2021. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/33834401/

5. Zhang Y, et al. The Causal Association Analysis between Depression and Cerebrospinal Fluid: From the Perspective of Mendelian Randomization. Psychol Res Behav Manag. 2025. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/40352659/

6. Mulić R, Ivanković M, Vučković I, Ćosić V, Papić N. Biomarkers of Oxidative Stress in Major Depressive Disorder. Open Access Maced J Med Sci. 2020;8(B):4144. doi:10.3889/oamjms.2020.4144.

7. Bader, M., Abdelwanis, M., Maalouf, M. et al. Detecting depression severity using weighted random forest and oxidative stress biomarkers. Sci Rep 14, 16328 (2024). https://doi.org/10.1038/s41598-024-67251-y

8. iu Y, Zhang B, Zhou Y, Li M, Gao Y, Qin W, et al. Plasma oxidative stress marker levels related to functional brain abnormalities in first-episode drug-naive major depressive disorder. Psychiatry Res. 2024;333:115742. doi:10.1016/j.pscychresns.2024.115742.

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/

Tratamento da intoxicação por metanol e uso da vitamina B9

A intoxicação por metanol é uma emergência médica grave que ocorre quando uma pessoa ingere (ou, mais raramente, inala) metanol (álcool metílico) — uma substância altamente tóxica encontrada em solventes, combustíveis, anticongelantes e bebidas adulteradas (“álcool caseiro”).

Fisiopatologia

O metanol em si não é extremamente tóxico, mas seu metabolismo hepático produz compostos altamente tóxicos:

O ácido fórmico é o principal responsável pela acidose metabólica grave e toxicidade ocular (pode causar cegueira). O metabolismo é lento, então os sintomas podem demorar horas a se manifestar.

Sintomas

Início: 6–30 horas após ingestão (mais rápido se não houver etanol junto).

Fases e sinais típicos:

  1. Fase inicial (semelhante ao álcool comum):

    • Euforia, tontura, náuseas, vômitos, dor abdominal.

  2. Fase tóxica (após metabolização):

    • Cefaleia intensa, visão borrada ("como se tivesse uma névoa"), cegueira.

    • Hiperventilação (por acidose metabólica).

    • Confusão, convulsões, coma.

Diagnóstico

Baseia-se em histórico clínico e achados laboratoriais:

  • Gasometria arterial: acidose metabólica com ânion gap elevado.

  • Osmolaridade plasmática: aumento do gap osmolar

  • Dosagem de metanol (se disponível).

  • Exame oftalmológico: edema de papila, alterações retinianas.

Tratamento

Deve ser imediato — quanto mais precoce, melhor o prognóstico.

  1. Suporte básico:

    • Manter via aérea, ventilação e circulação.

    • Corrigir acidose (bicarbonato de sódio IV).

    • Diazepam para crise convulsiva

  2. Bloquear metabolismo do metanol:

    • Fomepizol (inibidor da álcool desidrogenase) — tratamento de escolha.

    • Etanol (alternativa quando fomepizol não está disponível).

  3. Remover metanol e metabólitos:

    • Hemodiálise (principal medida em casos graves).

  4. Tratar toxicidade metabólica:

    • Ácido fólico ou folinato de cálcio — aceleram a conversão do ácido fórmico em CO₂ e H₂O.

Prognóstico

  • Mortalidade: 20–50% se não tratado.

  • Se o tratamento for precoce, a recuperação é possível, mas lesões visuais podem ser permanentes.

Por que usar Ácido Fólico (ou Folinato de Cálcio / Ácido Folínico)?

O ácido fólico (vitamina B9) e o folinato de cálcio participam de uma via alternativa que ajuda a eliminar o ácido fórmico do organismo.

Mecanismo bioquímico:

O ácido fórmico é normalmente convertido em CO₂ e H₂O por uma via dependente de tetraidrofolato (THF):

Essa reação é catalisada pela enzima 10-formil-tetraidrofolato desidrogenase. Quando administramos ácido fólico (ou folinato):

  • Aumentamos o pool de tetraidrofolato ativo.

  • Isso acelera a conversão do ácido fórmico em CO₂, reduzindo sua concentração e toxicidade.

  • Resultado: menor acidose metabólica e menor lesão ocular.

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/