O código escondido do metabolismo: quem decide quais genes ligam ou desligam?

Você herdou genes de seus pais, mas seu material genético não é um roteiro fixo. O DNA contém a informação, mas são as marcas epigenéticas — como acetilação, metilação, fosforilação e glicanos adicionados às histonas e ao DNA — que dizem quais genes estão ligados, desligados ou em espera.

O metabolismo da célula — ou seja, a forma como usamos glicose, aminoácidos e lipídios para gerar energia — fornece diretamente os cofatores e substratos usados pelas enzimas epigenéticas. Em outras palavras: os nutrientes que ingerimos e o estado energético da célula se traduzem em marcas químicas que modulam a expressão gênica.

Glicose, aminoácidos e o estado energético geram metabólitos-chaves (NAD⁺, acetil-CoA, α-cetoglutarato, SAM, UDP-GlcNAc, ATP) que atuam como substratos ou cofatores de enzimas epigenéticas — por exemplo, sirtuínas, HATs, Jmj/TET, HMT/DNMT, OGT e AMPK. Essas enzimas colocam ou retiram marcas químicas nas histonas (acetilação, metilação, fosforilação, O-GlcNAc) e no DNA (5mC, 5hmC), alterando a acessibilidade da cromatina e, portanto, quais genes são ligados ou desligados.

Glicólise / NAD⁺ ⇄ NADH → Sirtuínas (SIRT1/6)

  • O estado redox (relação NAD⁺/NADH) controla sirtuínas, desacetilases dependentes de NAD⁺. Mais NAD⁺ → maior atividade das sirtuínas → remoção de acetilos em histonas e fatores transcricionais → geralmente repressão de programas anabólicos e ativação de vias de economia/reciclagem (ex.: autofagia).

  • Ciclo do TCA → Citrato → Acetil-CoA → HATs (acetilação das histonas)

    • O citrato exportado para citosol/núcleo vira acetil-CoA (via ATP-citrato liase). Acetil-CoA é o doador de grupos acetil: HATs usam-no para acetilar lisinas de histonas, relaxando cromatina e favorecendo transcrição. Alterações na disponibilidade de acetil-CoA linkam estado nutricional ao nível global de acetilação.

  • Glutamina → α-cetoglutarato (αKG) → Jmj/TET (desmetilases dependentes de αKG)

    • αKG é cofator para as dióxigenases da família Jumonji (remoção de metilas em histonas) e para as enzimas TET (oxidação da 5mC para 5hmC no DNA). A presença de αKG facilita desmetilação; por outro lado, acúmulos de metabólitos análogos (ex.: 2-HG, succinato, fumarato) bloqueiam essas enzimas.

  • Metionina → SAM (S-adenosilmetionina) → HMTs / DNMTs (transferência de metilas)

    • SAM é o doador universal de grupos metila. HMTs metilam histonas; DNMTs metilam DNA (5mC). Assim, o estado do ciclo de um-carbono (folato/metionina) regula a metilação epigenética.

  • Via das hexosaminas → UDP-GlcNAc → OGT (O-GlcNAcilação)

    • Uma fração da glicose entra na via das hexosaminas formando UDP-GlcNAc. A OGT transfere GlcNAc para serinas/treoninas de proteínas nucleares (incluindo histonas e co-reguladores), modulando função e interações proteicas.

  • ATP / AMP → AMPK → fosforilação de histonas/enZimas

    • Em baixa energia (AMP↑), AMPK ativa-se e pode fosforilar histonas ou enzimas epigenéticas, promovendo respostas transcricionais ao estresse energético.

Resumindo, nutrição e energia são traduzidas em ‘marcas’ epigenéticas que reprogramam programas transcricionais — com impacto em diferenciação, resposta ao estresse, envelhecimento e câncer.

Por que isso importa?

Estes processos têm algumas implicações biológicas e clínicas:

  • Plasticidade transcricional: permite que células ajustem programas gênicos de forma rápida e reversível conforme nutrientes/energia.

  • Memória epigenética: mudanças sustentadas (p.ex. metilação do DNA) podem preservar estados celulares induzidos por ambiente/nutrição.

  • Doença e terapia: muitos tumores e distúrbios metabólicos exibem alterações epigenéticas causadas por reprogramação metabólica — e algumas terapias visam esses pontos (inibidores de DNMTs, moduladores de SIRT, etc.).

  • Intervenções (nutrição/estilo de vida): evidências experimentais sugerem que dieta, jejum intermitente e exercício alteram metabólitos epigenéticos; contudo, efeitos em humanos são contextuais e dependem de tecido, dose e duração — cuidado com extrapolações simplistas.

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Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/

Metabolômica: a peça que faltava no dogma central da biologia

O dogma central da biologia que aprendemos na escola é simples:
DNA → RNA → Proteína → Função.

Francis Crick, biólogo britânico que descobriu, junto com James Watson, a estrutura da dupla hélice do DNA. Formulou, em 1957, o dogma central da biologia, explicando o fluxo de informação genética (DNA → RNA → Proteína) - Cobb, 2017

O modelo de Crick explica como a informação genética é transmitida e se transforma em funções celulares. Mas ele tem uma falha: ignora as pequenas moléculas que realmente fazem a engrenagem biológica girar — os metabólitos.

O que é a metabolômica?

Metabolômica é a ciência que estuda todos os metabólitos presentes em uma célula, tecido ou organismo. Estamos falando de açúcares, aminoácidos, lipídios, ácidos orgânicos e até moléculas derivadas da dieta ou produzidas pelo nosso microbioma intestinal.

Essas moléculas não são meros “subprodutos”:

  • São combustível para as reações vitais.

  • Atuam como sinais químicos que ligam ou desligam genes.

  • Servem de matéria-prima para modificar DNA, RNA e proteínas.

Ou seja: o metaboloma não é o final da história, mas sim o centro de controle que conversa com todas as outras camadas da biologia.

Como os metabólitos mudam o dogma central

  1. DNA e epigenética: Moléculas como acetil-CoA ou SAM são usadas para adicionar marcas químicas no DNA e nas histonas. Isso decide se um gene será lido ou ficará “silenciado”.

  2. RNA: Em bactérias e plantas, alguns RNAs possuem ribosswitches — regiões que reconhecem metabólitos e mudam a transcrição na hora. Até em humanos, os níveis de certos cofatores determinam a modificação e estabilidade de RNAs.

  3. Proteínas: Quase todas dependem de metabólitos para funcionar. Eles servem como cofatores, modulam a atividade enzimática e ainda participam de modificações pós-traducionais (como fosforilação ou acetilação).

  4. Fenótipo final: O que realmente sentimos e vemos — saúde, doença, energia, comportamento — é muito mais refletido no perfil metabólico do que apenas na sequência de DNA.

Fatores externos que moldam o metaboloma

Dieta, estilo de vida, medicamentos, idade, gênero, microbiota intestinal e até o ambiente em que vivemos alteram diretamente nosso conjunto de metabólitos. Isso explica porque duas pessoas com o mesmo gene podem ter reações tão diferentes a uma mesma doença ou tratamento.

Por que isso importa?

  • Diagnóstico: perfis metabólicos funcionam como “assinaturas” da saúde ou da doença.

  • Tratamento personalizado: entender como cada corpo processa drogas e nutrientes abre caminho para terapias sob medida.

  • Integração científica: unir genômica, transcriptômica, proteômica e metabolômica dá uma visão muito mais completa da biologia.

Ou seja, se o DNA é o “manual de instruções” e as proteínas são as “máquinas”, os metabólitos são a energia, os sinais e os blocos de construção que permitem que tudo funcione. É por isso que hoje todo profissional de saúde tem que estudar metabolômica. O curso já começou. Vai ficar de fora?

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/

Metabolismo de aminoácidos no câncer

O câncer não é apenas uma doença de crescimento descontrolado de células — é também uma doença do metabolismo. Para sustentar sua rápida proliferação, as células tumorais reprogramam rotas metabólicas, aproveitando nutrientes de forma diferente das células normais. Entre esses nutrientes, os aminoácidos desempenham papel central, servindo não apenas como blocos de construção de proteínas, mas também como fontes de energia, intermediários para biossíntese e reguladores epigenéticos.

A figura do artigo da Frontiers in Cell and Developmental Biology (2020) ilustra como diferentes aminoácidos se integram em múltiplas vias bioquímicas que favorecem a sobrevivência tumoral.

Energia e o Ciclo de Krebs

Aminoácidos como glutamina, glutamato, aspartato e os de cadeia ramificada (BCAAs: leucina, isoleucina, valina) entram no ciclo do ácido cítrico (TCA ou Krebs). Esse ciclo, localizado na mitocôndria, é essencial para:

  • gerar energia (ATP),

  • fornecer intermediários como α-cetoglutarato, succinil-CoA e oxaloacetato,

  • abastecer rotas biossintéticas.

Em células cancerígenas, a glutamina ganha destaque: ela é convertida em glutamato e depois em α-cetoglutarato, alimentando o TCA e garantindo energia mesmo em condições de baixa glicose.

Ciclo da Ureia e Poliaminas

O ciclo da ureia, além de remover excesso de nitrogênio, fornece intermediários como ornitina e citrulina, que são desviados para a síntese de poliaminas (putrescina, espermidina, espermina). Essas moléculas regulam o crescimento celular, estabilizam o DNA e participam da tradução proteica — processos vitais para células tumorais.

Ciclo do Folato e Metionina

Aminoácidos como serina, glicina e metionina alimentam o ciclo de um carbono, que gera unidades de carbono usadas na síntese de nucleotídeos (DNA e RNA). Além disso, a metionina dá origem à SAM (S-adenosilmetionina), principal doador de grupos metil, fundamental para regulação epigenética. Assim, células cancerígenas utilizam aminoácidos não só para crescer, mas também para alterar a expressão gênica a seu favor.

Síntese de Nucleotídeos

Aspartato, glutamina e glicina são indispensáveis para formar purinas e pirimidinas (IMP, GMP, UMP), os blocos de DNA e RNA. Como tumores precisam duplicar seu genoma constantemente, essa via é especialmente ativa em células malignas.

Defesa Redox: Glutationa

O estresse oxidativo é um desafio constante para o câncer. Para se proteger, as células usam a glutationa (GSH), um antioxidante formado por glutamato, cisteína e glicina. A glutationa neutraliza espécies reativas de oxigênio (ROS), permitindo que as células tumorais sobrevivam em ambientes hostis e resistam a terapias.

O metabolismo de aminoácidos no câncer vai muito além da síntese de proteínas:

  • Fornece energia,

  • Alimenta a produção de DNA e RNA,

  • Sustenta a regulação epigenética,

  • Garante defesas antioxidantes,

  • E promove crescimento celular descontrolado.

Entender essas rotas é essencial porque muitas delas podem ser alvos terapêuticos. Inibir o uso de certos aminoácidos ou bloquear enzimas-chave pode abrir caminho para novas estratégias contra o câncer. Por meio de exames metabolômicos podemos estudar aminoácidos para avaliar as melhores estratégias para cada paciente.

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/