Metabolômica: a peça que faltava no dogma central da biologia

O dogma central da biologia que aprendemos na escola é simples:
DNA → RNA → Proteína → Função.

Francis Crick, biólogo britânico que descobriu, junto com James Watson, a estrutura da dupla hélice do DNA. Formulou, em 1957, o dogma central da biologia, explicando o fluxo de informação genética (DNA → RNA → Proteína) - Cobb, 2017

O modelo de Crick explica como a informação genética é transmitida e se transforma em funções celulares. Mas ele tem uma falha: ignora as pequenas moléculas que realmente fazem a engrenagem biológica girar — os metabólitos.

O que é a metabolômica?

Metabolômica é a ciência que estuda todos os metabólitos presentes em uma célula, tecido ou organismo. Estamos falando de açúcares, aminoácidos, lipídios, ácidos orgânicos e até moléculas derivadas da dieta ou produzidas pelo nosso microbioma intestinal.

Essas moléculas não são meros “subprodutos”:

  • São combustível para as reações vitais.

  • Atuam como sinais químicos que ligam ou desligam genes.

  • Servem de matéria-prima para modificar DNA, RNA e proteínas.

Ou seja: o metaboloma não é o final da história, mas sim o centro de controle que conversa com todas as outras camadas da biologia.

Como os metabólitos mudam o dogma central

  1. DNA e epigenética: Moléculas como acetil-CoA ou SAM são usadas para adicionar marcas químicas no DNA e nas histonas. Isso decide se um gene será lido ou ficará “silenciado”.

  2. RNA: Em bactérias e plantas, alguns RNAs possuem ribosswitches — regiões que reconhecem metabólitos e mudam a transcrição na hora. Até em humanos, os níveis de certos cofatores determinam a modificação e estabilidade de RNAs.

  3. Proteínas: Quase todas dependem de metabólitos para funcionar. Eles servem como cofatores, modulam a atividade enzimática e ainda participam de modificações pós-traducionais (como fosforilação ou acetilação).

  4. Fenótipo final: O que realmente sentimos e vemos — saúde, doença, energia, comportamento — é muito mais refletido no perfil metabólico do que apenas na sequência de DNA.

Fatores externos que moldam o metaboloma

Dieta, estilo de vida, medicamentos, idade, gênero, microbiota intestinal e até o ambiente em que vivemos alteram diretamente nosso conjunto de metabólitos. Isso explica porque duas pessoas com o mesmo gene podem ter reações tão diferentes a uma mesma doença ou tratamento.

Por que isso importa?

  • Diagnóstico: perfis metabólicos funcionam como “assinaturas” da saúde ou da doença.

  • Tratamento personalizado: entender como cada corpo processa drogas e nutrientes abre caminho para terapias sob medida.

  • Integração científica: unir genômica, transcriptômica, proteômica e metabolômica dá uma visão muito mais completa da biologia.

Ou seja, se o DNA é o “manual de instruções” e as proteínas são as “máquinas”, os metabólitos são a energia, os sinais e os blocos de construção que permitem que tudo funcione. É por isso que hoje todo profissional de saúde tem que estudar metabolômica. O curso já começou. Vai ficar de fora?

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/

Metabolismo de aminoácidos no câncer

O câncer não é apenas uma doença de crescimento descontrolado de células — é também uma doença do metabolismo. Para sustentar sua rápida proliferação, as células tumorais reprogramam rotas metabólicas, aproveitando nutrientes de forma diferente das células normais. Entre esses nutrientes, os aminoácidos desempenham papel central, servindo não apenas como blocos de construção de proteínas, mas também como fontes de energia, intermediários para biossíntese e reguladores epigenéticos.

A figura do artigo da Frontiers in Cell and Developmental Biology (2020) ilustra como diferentes aminoácidos se integram em múltiplas vias bioquímicas que favorecem a sobrevivência tumoral.

Energia e o Ciclo de Krebs

Aminoácidos como glutamina, glutamato, aspartato e os de cadeia ramificada (BCAAs: leucina, isoleucina, valina) entram no ciclo do ácido cítrico (TCA ou Krebs). Esse ciclo, localizado na mitocôndria, é essencial para:

  • gerar energia (ATP),

  • fornecer intermediários como α-cetoglutarato, succinil-CoA e oxaloacetato,

  • abastecer rotas biossintéticas.

Em células cancerígenas, a glutamina ganha destaque: ela é convertida em glutamato e depois em α-cetoglutarato, alimentando o TCA e garantindo energia mesmo em condições de baixa glicose.

Ciclo da Ureia e Poliaminas

O ciclo da ureia, além de remover excesso de nitrogênio, fornece intermediários como ornitina e citrulina, que são desviados para a síntese de poliaminas (putrescina, espermidina, espermina). Essas moléculas regulam o crescimento celular, estabilizam o DNA e participam da tradução proteica — processos vitais para células tumorais.

Ciclo do Folato e Metionina

Aminoácidos como serina, glicina e metionina alimentam o ciclo de um carbono, que gera unidades de carbono usadas na síntese de nucleotídeos (DNA e RNA). Além disso, a metionina dá origem à SAM (S-adenosilmetionina), principal doador de grupos metil, fundamental para regulação epigenética. Assim, células cancerígenas utilizam aminoácidos não só para crescer, mas também para alterar a expressão gênica a seu favor.

Síntese de Nucleotídeos

Aspartato, glutamina e glicina são indispensáveis para formar purinas e pirimidinas (IMP, GMP, UMP), os blocos de DNA e RNA. Como tumores precisam duplicar seu genoma constantemente, essa via é especialmente ativa em células malignas.

Defesa Redox: Glutationa

O estresse oxidativo é um desafio constante para o câncer. Para se proteger, as células usam a glutationa (GSH), um antioxidante formado por glutamato, cisteína e glicina. A glutationa neutraliza espécies reativas de oxigênio (ROS), permitindo que as células tumorais sobrevivam em ambientes hostis e resistam a terapias.

O metabolismo de aminoácidos no câncer vai muito além da síntese de proteínas:

  • Fornece energia,

  • Alimenta a produção de DNA e RNA,

  • Sustenta a regulação epigenética,

  • Garante defesas antioxidantes,

  • E promove crescimento celular descontrolado.

Entender essas rotas é essencial porque muitas delas podem ser alvos terapêuticos. Inibir o uso de certos aminoácidos ou bloquear enzimas-chave pode abrir caminho para novas estratégias contra o câncer. Por meio de exames metabolômicos podemos estudar aminoácidos para avaliar as melhores estratégias para cada paciente.

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/

A Roda da Urina: dos Diagnósticos Médicos na Idade Média ao século XXI

Na Europa medieval, a urina era vista como um verdadeiro espelho da saúde. Examinar sua cor, cheiro, sabor, consistência e até bolhas era uma das principais ferramentas de diagnóstico dos médicos. Tratados como On Urines (século XIII, Gilles de Corbeil) serviam como guias visuais para interpretação dos sinais — uma prática conhecida como uroscopia.

Ulrich Pinder, Epiphanie medicorum: Speculum vivendi vrinas horninum (Nuremberg: Friedrich Peypus, 1506).

O que os médicos observavam?

Além das características físicas da urina, eram considerados fatores como idade, sexo, dieta, emoções e esforço físico do paciente.

Algumas associações típicas descritas em manuais médicos:

  • Sedimentos negros e turvos + surdez e insônia → prognóstico grave, risco de hemorragia nasal.

  • Cor arroxeada (livid) → febres graves, doenças do pulmão, útero, rins, gangrena ou decadência vital.

  • Urina branca e fina → ligada a diabetes, epilepsia, reumatismo, hidropisia e até morte.

  • Cor de vinho → preocupante com febre (inflamação nos rins/fígado ou ruptura de vasos), mas em corpos saudáveis podia ser efeito de sexo, corrida ou dança excessiva.

  • Bolhas persistentes → humores “crus”, indicando cefaleia, vômitos, diarreia, problemas renais.

  • Urina escura, viscosa e escassa → presságio de morte.

  • Urina esverdeada → sinal de icterícia ou febre fatal.

A prática da uroscopia não ficou restrita a médicos eruditos. Textos leigos circulavam entre viajantes e comerciantes, e a imagem do médico segurando o frasco de urina — a matula — tornou-se símbolo popular, às vezes alvo de sátira.

Da urina medieval à metabolômica moderna

Embora soe curiosa, a ideia de que a urina poderia revelar segredos do corpo antecipou conceitos atuais. Em 1946, Roger Williams, na revista The Human Frontier, falou sobre perfis metabólicos individuais. Em 1978, Gates e Sweeley publicaram na Clinical Chemistry a primeira análise em larga escala de perfis metabólicos urinários.

Hoje, a metabolômica humana investiga centenas de pequenas moléculas presentes na urina e em outros fluidos corporais, construindo uma ponte entre a prática medieval e a ciência de ponta. Aprenda mais no curso de metabolômica na prática clínica.

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/