O cérebro da pessoa com obesidade funciona diferente: como a neuroinflamação afeta fome, gasto calórico, decisão e motivação

A obesidade não é apenas uma questão de "comer demais e se exercitar de menos". Nas últimas décadas, a ciência tem revelado algo mais profundo: o cérebro da pessoa com obesidade funciona de maneira diferente — e essas alterações dificultam o emagrecimento de forma persistente. Um dos principais fatores envolvidos é a neuroinflamação, um processo inflamatório crônico e silencioso no sistema nervoso central que altera funções críticas como regulação da fome, saciedade, controle de impulsos, motivação para se exercitar e até o próprio gasto calórico em repouso.

1. Obesidade e o cérebro: o papel da neuroinflamação

Estudos com neuroimagem funcional e modelos animais mostram que a obesidade está associada a inflamação em áreas específicas do cérebro, principalmente o hipotálamo, núcleo accumbens, córtex pré-frontal e amígdala.

a) Hipotálamo e regulação da fome

O hipotálamo é o centro de controle da fome e do metabolismo. Em pessoas com obesidade, ele sofre um processo de gliose (ativação de células da glia) e resistência à leptina (o hormônio da saciedade).

Resultado:

  • O cérebro “acredita” que o corpo está em déficit energético mesmo quando há excesso de gordura.

  • Há aumento crônico do apetite e redução do gasto calórico.

Thaler JP et al. Obesity is associated with hypothalamic injury in rodents and humans. J Clin Invest. 2012 Jan;122(1):153-62. doi: 10.1172/JCI59660.

b) Córtex pré-frontal e controle de impulsos

Essa região está envolvida na tomada de decisão e inibição de comportamentos automáticos. Na obesidade, há redução da conectividade funcional, o que:

  • Aumenta o comportamento alimentar impulsivo.

  • Dificulta a adesão a dietas restritivas ou planejamento alimentar.

Volkow ND et al. Obesity and addiction: neurobiological overlaps. Obes Rev. 2013 Jan;14(1):2-18. doi: 10.1111/j.1467-789X.2012.01031.x.

c) Sistema dopaminérgico e motivação

Pessoas com obesidade apresentam redução da sensibilidade dopaminérgica, especialmente nos receptores D2, no núcleo accumbens:

  • Menor prazer com alimentos comuns.

  • Maior busca por alimentos hiperpalatáveis.

  • Menor motivação para atividades físicas.

Wang GJ et al. Brain dopamine and obesity. Lancet. 2001 Feb 3;357(9253):354-7. doi: 10.1016/s0140-6736(00)03643-6.

2. Fases do emagrecimento e o impacto cerebral

O cérebro reage a tentativas de emagrecimento como se estivesse sob ameaça, ativando mecanismos compensatórios. Por isso, cada fase do emagrecimento exige uma abordagem nutricional diferente para contornar as barreiras biológicas.

Fase 1: Desinflamar o cérebro e restaurar a saciedade

Objetivo: Reduzir neuroinflamação e melhorar a sinalização de leptina e insulina.

Estratégias nutricionais:

  • Dieta anti-inflamatória rica em fibras e antioxidantes: incluir frutas vermelhas, vegetais verdes escuros, cúrcuma, azeite de oliva, peixes ricos em ômega-3.

  • Redução de alimentos ultraprocessados (ricos em açúcar, gordura trans e aditivos).

  • Suplementação (se necessário):

    • Ômega-3 EPA/DHA – redução de citocinas inflamatórias.

    • Curcumina ou compostos fenólicos – propriedades neuroprotetoras.

    • Probióticos e prebióticos – modulam o eixo intestino-cérebro.

Fase 2: Regular fome, apetite e impulsividade alimentar

Objetivo: Reeducar o sistema de recompensa e recuperar controle sobre os impulsos alimentares.

Estratégias nutricionais:

  • Fracionamento alimentar com proteínas em todas as refeições – estabiliza glicemia e reduz fome.

  • Jejum intermitente com cautela: pode ajudar em alguns casos, mas exige monitoramento (pode aumentar impulsividade em outras pessoas).

  • Alimentos ricos em triptofano (ovos, grão-de-bico, banana verde) – substrato para serotonina, ajuda no controle emocional.

  • Mindful eating (comer consciente): ajuda a reconectar sinais de fome e saciedade.

Fase 3: Aumentar motivação, gasto calórico e evitar o efeito platô

Objetivo: Estimular o sistema dopaminérgico e prevenir a adaptação metabólica.

Estratégias nutricionais:

  • Refeed days controlados (dias com mais carboidrato de boa qualidade) – aumentam leptina e dopamina.

  • Alternância de calorias (caloric cycling) – evita redução drástica do metabolismo basal.

  • Cafeína e compostos termogênicos naturais (chá verde, pimenta caiena) – leve aumento do gasto calórico.

  • Atividade física combinada (força + HIIT) – melhora sensibilidade à insulina, aumenta massa magra e dopamina.

4. O fator psicológico: motivação e adesão

Mesmo com mudanças fisiológicas, a motivação para manter hábitos saudáveis pode ser baixa. Isso não é fraqueza — é o cérebro tentando preservar energia.

Recomendações práticas:

  • Reforço positivo e metas de curto prazo (ex: roupas que servem melhor, mais disposição).

  • Grupo de apoio ou coaching nutricional – aumenta adesão.

  • Sono adequado: 7-9h por noite é essencial para regulação do eixo HPA e controle de apetite.

Ao invés de simplesmente cortar calorias, devemos trabalhar com o corpo — e não contra ele —, usando estratégias nutricionais para modular a neuroinflamação, melhorar a sinalização hormonal e restaurar o controle sobre as decisões alimentares.

Emagrecer não é só perder peso. É reprogramar o cérebro para voltar a funcionar a favor da saúde.

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Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/

A Zonulina e a Síndrome dos Ovários Policísticos: Uma Nova Peça no Quebra-Cabeça da SOP?

A Síndrome dos Ovários Policísticos (SOP) é uma condição multifatorial que afeta milhões de mulheres em idade reprodutiva, caracterizada por desequilíbrios hormonais, resistência à insulina e disfunções ovulatórias. Um estudo trouxe à tona um possível elo até então pouco explorado: a proteína zonulina.

O que é a zonulina?

Zonulina é uma proteína que regula a permeabilidade do intestino. Níveis elevados de zonulina estão associados à hiperpermeabilidade intestinal, também conhecida como "intestino permeável", uma condição que pode desencadear inflamações sistêmicas.

Principais achados do estudo:

  • Mulheres com SOP apresentaram níveis significativamente mais altos de zonulina no sangue, quando comparadas a mulheres sem a síndrome.

  • Esses níveis elevados estavam positivamente correlacionados com a resistência à insulina — um dos pilares metabólicos da SOP.

  • Além disso, quanto maior a concentração de zonulina, mais severas eram as anovulações (ausência de ovulação), sugerindo que a zonulina pode estar ligada à disfunção reprodutiva observada na SOP.

A SOP também leva à disbiose, reduzindo a diversidade microbiana e os micróbios benéficos, como Faecalibacterium, Roseburia, Akkermenisa e Bifidobacterium, e causando uma maior carga de patógenos oportunistas, como Escherichia/Shigella, Fusobacterium, Bilophila e Sutterella.

O intestino associado à SOP apresenta níveis mais elevados da enzima microbiana intestinal β-glucuronidase, causando a desglucuronidação do andrógeno conjugado, tornando-o suscetível à reabsorção pela circulação entero-hepática, levando a um nível mais alto de andrógeno no sistema circulatório.

De modo geral, na SOP, essa disbiose aumenta a permeabilidade intestinal e o LPS na circulação sistêmica, o N-óxido de trimetilamina (TMAO) no sistema circulatório, a inflamação crônica no tecido adiposo e no fígado, e o estresse oxidativo e o acúmulo de lipídios no fígado. Assim, em mulheres com SOP, a disbiose pode promover a progressão e a gravidade do diabetes tipo 2, da doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) e das doenças cardiovasculares (DCV).

Para aliviar essas complicações associadas à SOP, terapêuticas microbianas (modulação intestinal com pré e probióticos ou transplante de microbioma fecal) podem ser usadas sem quaisquer efeitos colaterais, ao contrário do que ocorre com a terapia hormonal. A zonulina também poderia ser um novo marcador clínico e, quem sabe, até um alvo terapêutico futuro.

Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/

Obesidade, disbiose e alterações no neurodesenvolvimento

A obesidade materna, caracterizada por inflamação crônica de baixo grau e disbiose intestinal, pode comprometer o ambiente intrauterino — o chamado "inflamed womb" (útero inflamado)— e aumentar o risco de distúrbios do neurodesenvolvimento na prole, como TEA, TDAH, ansiedade e déficits cognitivos (Cirulli et al., 2022).

A obesidade gera um estado inflamatório crônico, com secreção aumentada de citocinas pró-inflamatórias como IL‑6, TNF‑α e IL‑1β, e ativação de sistemas imunitários via receptores TLR.

Durante a gestação, essa inflamação persistente prejudica a tolerância imunitária placentária, favorecendo um ambiente mais protetor à proliferação de células decíduas ativas e marcadores inflamatórios na placenta e líquido amniótico.

A obesidade também está associada à disbiose intestinal materna, com menos diversidade microbiana e aumento relativo de Proteobacteria (como E. coli) e diminuição de Bifidobacterium e Bacteroides fragilis.

Isso favorece permeabilidade intestinal aumentada (leaky gut), facilitando a passagem de endotoxinas (como LPS) e bactérias ou seus fragmentos via placenta, iniciando inflamação fetal e ativação TLR no sistema imune do feto.

Microglia Fetal como Alvo Prioritário

A microglia, macrófagos residentes do cérebro fetal, é fundamental na maturação, sinaptogênese, poda sináptica e plasticidade neural. É o sistema imune do cérebro.

Estudos em linhagens de animais germ-free (livres de microbiota) demonstram que a ausência de microbioma materno leva a microglia imatura e disfuncional, com expressão gênica alterada, de forma dependente de sexo.

Em modelos animais de obesidade materna, observa-se microglia hiperativa, níveis elevados de TLR4/IL‑1β e redução de fatores neurotróficos como BDNF e TPH2 (enzima chave da serotonina), resultando em interações regionais prejudicadas (hipocampo, córtex pré‑frontal, etc.) e déficits cognitivos, sociais e de regulação comportamental.

Evidência em Humanos e Meta-Análises

Análises epidemiológicas em milhões de nascimentos mostram associação consistente entre obesidade pré‑gestacional e:

  • Dobro do risco de TEA;

  • ~ 32% maior risco de TDAH;

  • Maior risco para transtornos de conduta e problemas comportamentais

  • Estudos longitudinais como PREOBE mostram que filhos de mães obesas apresentam pontuações elevadas em escalas comportamentais (CBCL) aos 3‑4 anos e maior incidência de problemas emocionais e de desenvolvimento.

Estratégias Nutricionais de Intervenção

Estudos mostram potenciais intervenções nutricionais com evidência emergente:

  1. N-acetilcisteína (NAC) – age como antioxidante e modulador da inflamação.

  2. MFGM (membrana de gordura do leite materno) – com compostos bioativos que influenciam a microbiota materna e fetal.

  3. LC-PUFA (ácidos graxos poli-insaturados de cadeia longa, especialmente ômega‑3) – regulam o perfil lipídico neurotrófico, reduzem inflamação e modulam microglia.

Esses nutrientes mostraram potencial em modelos animais para reduzir ganho de peso gestacional excessivo, estresse oxidativo e inflamação sistêmica, além de favorecer uma microbiota mais equilibrada.

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Dra. Andreia Torres é Nutricionista, especialista em nutrição clínica, esportiva e funcional, com mestrado em nutrição humana, doutorado em psicologia clínica e cultura/ensino na saúde, pós-doutorado em saúde coletiva. Também possui formações no Brasil e nos Estados Unidos em práticas integrativas em saúde. Para contratar envie uma mensagem: http://andreiatorres.com/consultoria/