O Transtorno do Espectro Autista (TEA) apresenta uma gama de desafios no comportamento e na adaptação ao ambiente, frequentemente resultando em dificuldades de regulação emocional e respostas desproporcionais ao estresse. Esses comportamentos não são apenas "fora de controle" por conta do TEA; eles têm uma base bioquímica, particularmente no que diz respeito ao eixo Hipotálamo-Pituitária-Adrenal (HPA), um dos sistemas mais importantes na regulação do estresse.
O Eixo HPA: O Corpo e o Estresse
O eixo HPA é responsável pela liberação de cortisol, o principal hormônio do estresse, que tem a função de preparar o organismo para reagir a situações de ameaça. Em indivíduos típicos, esse sistema geralmente responde de maneira eficaz ao estresse, ativando-se rapidamente e se normalizando após um período. No entanto, em crianças com TEA, a regulação desse sistema apresenta padrões distintos e paradoxais.
1. Níveis Basais de Cortisol:
Em crianças com TEA, especialmente aquelas com deficiência intelectual severa, os níveis basais de cortisol são significativamente mais baixos (até 29% mais baixos). Isso sugere uma espécie de "exaustão" ou uma resposta mais preguiçosa do eixo HPA em repouso. Essa baixa produção de cortisol pode ser indicativa de uma maior vulnerabilidade ao estresse. De fato, crianças com níveis baixos de cortisol em repouso podem ter maior sensibilidade ao estresse e dificuldades de adaptação, o que reforça a ideia de que esses indivíduos estão constantemente “preparados” para reagir de forma intensa a novos estressores, mesmo quando não há uma ameaça imediata.
Níveis mais baixos de cortisol no TEA (Corbett et al., 2006)
2. Comprometimento da Resposta ao Despertar (CAR):
O aumento do cortisol ao acordar, conhecido como Resposta ao Despertar (CAR), é crucial para preparar o corpo para as demandas do dia. Algumas crianças autistas têm dificuldades significativas nesse processo. Alguns estudos (mas não todos) mostram que pessoas com TEA não apresentam o aumento esperado de cortisol ao despertar, o que compromete a capacidade de se adaptar a transições e imprevistos ao longo do dia. Isso pode explicar por que muitos autistas demonstram maior resistência à mudança ou dificuldades em lidar com novas rotinas, já que o corpo não está adequadamente preparado para o que vem a seguir (Hadwin et al., 2019).
3. Resposta ao Estresse Agudo:
Apesar dos níveis começarem mais baixos, quando essas crianças enfrentam estressores agudos, como um "meltdown" (colapso emocional), a resposta do cortisol é desproporcional. Estudos mostram que os picos de cortisol nessas situações podem ser até 3,2 vezes maiores (0,426 μg/dL vs. 0,132 μg/dL) do que em crianças neurotípicas. No entanto, o tempo de recuperação do cortisol também é muito mais prolongado — cerca de 58% mais lento. Isso implica que, além de reagirem de maneira exagerada ao estresse, as crianças com TEA não conseguem retornar rapidamente a um estado de calma, o que pode resultar em ciclos de estresse prolongados e comportamentos repetitivos.
4. Alterações no Ritmo Circadiano:
O ritmo circadiano, que regula o ciclo sono-vigília, também é afetado em crianças com TEA. Essas crianças apresentam uma variação muito maior na inclinação do cortisol entre a manhã e a noite (38% mais variação), o que pode causar um descompasso em sua capacidade de regular a energia e o foco ao longo do dia. Além disso, um subgrupo de crianças autistas apresentam um aumento paradoxal do cortisol à noite, interferindo na qualidade do sono e agravando problemas de comportamento (Corbett et al., 2008). Alterações nos genes CLOCK, nos níveis de melatonina e no eixo HPA influenciam estas alterações no ritmo circadiano no TEA (Dell'Osso et al., 2022).
5. O Padrão Hormonais em Crianças com Comportamentos Estereotipados:
Em crianças com TEA que apresentam comportamentos estereotipados (como balançar o corpo, bater as mãos, etc.), a relação com o cortisol é ainda mais complexa. Crianças com déficit intelectual (DI) e TEA mostram menos cortisol, sugerindo que os comportamentos repetitivos podem funcionar como uma forma de autorregulação, uma tentativa do corpo de controlar o estresse interno. Em contraste, crianças com apenas DI, sem o TEA, podem mostrar um aumento no cortisol, o que indica que comportamentos repetitivos nessas crianças estão associados a uma maior ativação do sistema de estresse (Dufour, Lanovaz, & Plusquellec, 2022; Ohtsubo et al., 2024).
6. Hiperresponsividade Sensorial e o Esgotamento HPA:
Muitas crianças autistas apresentam hiperresponsividade sensorial — uma resposta exagerada a estímulos como luzes fortes, sons altos ou toques inesperados. Estudos mostram que essas crianças também demonstram um esgotamento mais rápido do eixo HPA, com uma queda de cortisol mais acentuada após a exposição a estressores. Isso sugere que essas crianças estão constantemente em um estado de alerta elevado, o que pode levar a uma sobrecarga do sistema de estresse e dificultar sua recuperação emocional. Em adultos com TEA, aqueles com maior grau de neuroticismo experimentam maior estresse, especialmente quando em ambientes novos e pessoas diferentes (van Oosterhout et al., 2022).
Como regular o eixo HPA no TEA?
Esses dados mostram que os comportamentos de crianças com TEA não são apenas respostas imprevisíveis. São manifestações de desequilíbrios bioquímicos mensuráveis, causados por disfunções no eixo HPA e em outros sistemas hormonais.
Regular o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA) e os níveis de cortisol em indivíduos com autismo pode ser complexo, mas vários estudos fornecem insights sobre possíveis abordagens.
Intervenções que reduzem o estresse e a ansiedade podem ajudar a regular os níveis de cortisol. Técnicas como terapia cognitivo-comportamental (TCC), atenção plena e estratégias de relaxamento podem ser benéficas no gerenciamento de respostas ao estresse (Corbett, & Simon, 2014).
A atividade física regular demonstrou ajudar a reduzir os níveis de cortisol e melhorar o gerenciamento geral do estresse. Incentivar atividades físicas estruturadas pode dar suporte à regulação do eixo HPA (Riis et al., 2024).
Uma dieta balanceada que apoie a saúde geral também pode desempenhar um papel no gerenciamento do estresse e dos níveis de cortisol. Intervenções nutricionais adaptadas às necessidades de indivíduos com autismo podem ajudar nesse sentido. Probióticos, ginseng, cetose ajudam a ativar o eixo HPA (Ryan et al., 2018; Wu et al., 2022).